quinta-feira, 12 de agosto de 2010













Evandro Pereira Silva

Deslizamentos de terra provocados pela chuva torrencial que desabou no Rio de Janeiro entre os dias 5 e 7 de abril causaram a morte de duas pessoas no Vidigal, Ana Maria Freire e seu filho Dário, soterrados enquanto dormiam. A casa em que viviam foi erguida em área de risco, em plena encosta. O armador de construção Marinaldo, chefe da família, escapou porque estava na cozinha, único cômodo da casa a se manter de pé, no instante do desabamento, por volta de quatro da manhã do dia 6.

A tragédia ocorreu exatamente quatro anos depois que os Ministérios da Justiça e das Cidades, no âmbito dos Programas Segurança Cidadã e Papel Passado, deram início a um projeto de regularização fundiária que proporcionaria aos habitantes do morro do Vidigal o reconhecimento de seu direito à moradia. Após levantamentos físicos, socioeconômicos e cadastrais feitos pela empresa Ambiental Engenharia – trabalho dado como encerrado em 30 de abril de 2009 – e posterior encaminhamento à Defensoria Pública para tramitação processual, o projeto registraria títulos de habitação em nome dos proprietários. A Defesa Civil foi notificada sobre moradias em áreas de risco. O registro de títulos, por sua vez, seria uma medida para viabilizar a urbanização da área. Seria, pois toda a documentação produzida parou na Defensoria devido à forte demanda, aproximadamente um ano após o término do levantamento.

Sebastião mostra os tubos dos “ecolimites móveis”
(Foto: Evandro Pereira)
O engenheiro Nilton Ferraz, da Ambiental, defendeu o projeto. Segundo ele, o levantamento forneceu as bases para uma atuação mais ampla por parte do poder público, mas sua relevância não pode ser julgada antes que seus efeitos se façam sentir. “Fizemos estritamente o que competia à empresa nos termos da licitação conduzida pelo PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], os próximos passos competem ao governo. Garantir infra-estrutura para a comunidade, impedir a construção de moradias em áreas de risco e, caso necessário, reassentar aqueles que se encontram nessa situação previamente.”

Entre os moradores, cientes do histórico de deslizamentos no local, é disseminada a opinião de que o projeto de regularização fundiária acarretaria o ônus dos impostos sem a contrapartida dos benefícios básicos prometidos. São testemunhas de que, diante do risco de deslizamentos e desabamentos apontados pelo levantamento ou em vistorias anteriores, a Prefeitura, por meio da Geo-Rio, órgão da Secretaria Municipal de Obras responsável pela análise geotécnica de encostas, ateve-se à demarcação do ecolimite – área limítrofe de segurança para meio ambiente e habitações. “Ninguém respeita esse limite. São estacas, tubos de PVC recheados com concreto, de uns dois metros. Qualquer um tira do chão. Tira, constrói, depois finca a estaca mais à frente”, conta o pedreiro Sebastião Silva.

O barranco invade a casa de Ediram
(Foto: Evandro Pereira)
Segundo dados do IBGE, mais de 9 mil pessoas vivem no Vidigal. O levantamento não foi feito junto a todos os moradores, não era raro encontrar as portas das casas trancadas, seus donos no trabalho. Apesar de ter estendido a pesquisa aos fins de semana com o intuito de entrevistar os proprietários em seus dias de folga, a Ambiental não obteve êxito em cobrir toda a área. “Faltou dinheiro”, sintetizou Nilton, em referência aos R$ 900 mil em recursos do PNUD.

Dentre os que receberam a visita dos agentes, muitos se negaram a efetuar cadastro, outros se arrependeram, por temerem a possibilidade de remoção. A empregada doméstica Ediram Campello, que viu a terra de um barranco invadir seu quintal, relatou a visita da Defesa Civil após as chuvas. “Estiveram aqui e pediram a desocupação da casa. Mas para onde eu iria?” Ofereceram a ela duas possibilidades, a Escola Municipal Djalma Maranhão, na subida do morro, e um abrigo da prefeitura em Campo Grande. “Em escola não tem como ficar, porque tenho filhos pequenos e não teria como cuidar deles. Campo Grande eu nem sei onde fica, trabalho na Lagoa, o que eu conheço da cidade é o que vejo no caminho da casa ao trabalho.”

Maria Alves duvida dos laudos da Defesa Civil
(Foto: Gabriela Charpinel)
Se os moradores manifestam o desejo de ficar em seus lares motivados pela proximidade do emprego, por outro lado suspeitam que uma política de remoções, caso posta em prática, seja impulsionada pela especulação imobiliária. Afinal, o Vidigal tem vista privilegiada para o mar, além de se localizar na Zona Sul da cidade. “O que temos de bom, mesmo, é esse mar que vemos da janela”, diz Maria Alves. A Defesa Civil interditou a casa de seu vizinho, mas não a sua. Não mais que dois palmos separam as duas construções. “Como pode esta casa (aponta para a do vizinho) estar condenada e a minha, não, se as duas são praticamente coladas?” Em seguida, sugere: “Só pode ser porque a casa dele tem visão melhor, dá pra ver as ilhas (Cagarras)...”

Vidas em risco, vidas em trânsito

Evânio Pereira, membro de uma ONG que atua em questões de habitação da comunidade, esteve em contato com um funcionário da Geo-Rio que, em visita técnica à favela, julgou isentas de risco edificações condenadas pela Defesa Civil. O que só faz aumentar a dúvida: ficar e viver sob o risco de desabamentos, ou partir e viver em trânsito?

“Um projeto de urbanização não pode concentrar recursos e esforços somente na questão da habitação, o problema do transporte de massas também deve ser contemplado, um está intimamente ligado ao outro”, analisa Nilton Ferraz. “Em situações de maior gravidade e urgência deve-se priorizar a vida. Os reassentamentos são impopulares, e há um grande custo político envolvido. A resistência à remoção será maior na medida em que persistir a falência dos sistemas de transporte.”

Ainda desolado pela tragédia que se abateu sobre sua família, Marinaldo fez sua escolha. Mudou-se com a roupa do corpo – tudo que lhe restou – para a casa da irmã Lia em Rio das Pedras. Próximo à Barra da Tijuca, bairro onde trabalha na construção de um prédio de alto luxo. Agora, em vez de quatro horas da manhã, levanta-se às cinco.



 Nota: 

Defensoria Pública, Secretaria Municipal de Habitat e Urbanismo, Secretarias Estaduais de Obras e Habitação e ITERJ não responderam às tentativas de contato da reportagem. A Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, em e-mail de 28 de abril de 2010, afirmou que a solicitação de entrevista “está sendo encaminhada para verificação”.


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