quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Entrevista com Elson: "O Morro do Céu é uma situação típica de remoção"

Por Mário Cajé e André Coelho

Em sua sala na Escola de Engenharia da UFF, o professor Elson do Nascimento mostra os documentos do PMRR (Plano Municipal de Redução de Riscos de Instabilidade de Encostas e de Inundação), que estiveram no centro da polêmica em torno da responsabilidade da prefeitura de Niterói sobre a tragédia no Morro do Bumba. O estudo, coordenado por ele, reuniu uma equipe de 16 pessoas, entre docentes e estudantes de graduação e pós-graduação, e foi entregue à prefeitura no início de 2007. Previa o investimento de R$ 19 milhões em obras para as áreas de risco em todo o município. Agora, diz o professor, os gastos com as consequências das chuvas, para Niterói e São Gonçalo, são calculados em R$ 200 milhões. Pior: “quando se liberar algum recurso, o problema será outro: a dengue, a segurança pública, alguma outra prioridade”, e o problema das encostas passará novamente para segundo plano.

Nesta entrevista, Elson fala das dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores para verem as consequências práticas de seus estudos e alerta para a situação emergencial no Morro do Céu: “ali é uma área totalmente imprópria para habitação. Não há alternativa senão a retirada das pessoas”.

A partir do ocorrido no Morro do Bumba, o senhor sabe se a prefeitura de Niterói reavaliou sua posição sobre os estudos, procurando adotar as medidas propostas pela equipe técnica?

A história da humanidade mostra que as tragédias levam, naturalmente, à mudança de comportamento. As medidas que estão sendo tomadas agora são emergenciais e normais em eventos desse tipo: atendimento às vítimas, realocação, resolução dos casos de óbito. Os problemas climáticos devem ser tratados preventivamente, lembrando que estamos num clima tropical, caracterizado por chuvas intensas a partir de dezembro até março ou abril. Só daqui a alguns meses poderemos avaliar se houve de fato esta mudança de comportamento.

Existem estudos similares atualmente sendo desenvolvidos pela UFF?

Nós desenvolvemos e já concluímos o PMRR para a cidade de São Gonçalo, nos mesmos moldes do que foi desenvolvido para Niterói. Este plano faz parte de uma iniciativa do Ministério das Cidades e hoje, pelas informações que possuímos, 66 municípios dispõem do estudo. O objetivo é orientar a aplicação de verbas de forma preventiva, propondo, no caso das encostas, as drenagens e as obras de geotecnia para que, assim, as ações surtam efeito para o período seguinte de chuvas.

Desses 66 municípios, quais realizaram as propostas?

O Rio de Janeiro é um deles. O Rio já vem trabalhando nesta linha há bastante tempo, bem antes do plano, criando, inclusive, a Geo-Rio, uma empresa municipal dedicada exclusivamente à contenção de encostas. Existe também a Rio Águas, responsável pela parte de drenagem. Pela cidade do Rio é possível observar obras estruturais de engenharia bem significativas, preventivas. O deslizamento é, na verdade, um processo natural, já que a crosta terrestre vai sendo moldada ao longo dos milhões de anos, sobretudo pela ação dos ventos e das águas. O que não é natural é que haja residências nos locais impróprios. A intervenção humana, de maneira geral, acelera o processo de erosão, mas, com certeza, também pode retardá-lo, se esta intervenção ocorrer de forma adequada.

Como é o processo desde a elaboração até a aplicação dos estudos?

São dois momentos: primeiro a universidade faz o estudo, a pedido das prefeituras. A implementação é o segundo momento e depende exclusivamente da prefeitura. Pode haver, inclusive, o convite para que a universidade acompanhe e assessore a aplicação do plano. Isto é o máximo que a universidade pode fazer, uma vez que ela não é um órgão executivo. Assim, se formos convidados a colaborar na implantação do sistema, há por parte da universidade o interesse em participar, mas isso depende das administrações. 

Se as propostas sugeridas pelos pesquisadores não têm sido implementadas pela prefeitura de Niterói, qual teria sido a razão da solicitação dos estudos? O senhor considera que haja realmente a intenção de realizar os projetos?

É muito difícil dizer a razão para isso. O objetivo da universidade é realizar os estudos, seja para as prefeituras ou para o setor privado, quando este solicita pesquisas e consultoria para o planejamento das suas decisões. No entanto, a pesquisa pode servir apenas como uma eventual alternativa, não havendo obrigação em seguir as propostas do projeto. 

A prefeitura tinha algum estudo paralelo?

Não. Houve estudos anteriores, mas não tão detalhados. Este plano cobria todo o município. O Instituto de Geociências da UFF também fez um estudo em nível municipal, mas que abrangia especificamente a parte geológica e serviu de entrada para o PMRR. Não sei por que o plano não foi aplicado. As prefeituras possuem muitas demandas e existe uma lógica, de certa forma, perversa. As aplicações e as decisões governamentais atendem mais a classe média que a pobre. Enquanto as instituições privadas costumam aplicar as consultas feitas à universidade, na gestão pública a lógica é diferente. No caso específico deste plano, o orçamento previsto para todo o município de Niterói foi de R$ 19 milhões. Para o Morro do Bumba, foram previstos R$ 419 mil para obras de engenharia, estruturas de drenagem e geotécnicas. A metodologia previa obras de baixo custo. Pelas informações que temos, em 2009 foram aplicados R$ 50 mil em contenção de encostas para todo o município, o que, de fato, é muito pouco. Ainda em 2004, quando visitamos o Morro do Bumba, detectamos problemas de drenagem na estrada.

Qual seria, em Niterói, a área em que a desocupação seria mais urgente?

Numa avaliação geral, pelo menos 30% da população de Niterói, cerca de 150 mil pessoas, vivem em encostas. Dessas, há um número muito elevado morando em áreas de risco, e por isso não é possível, em curto prazo, promover uma desocupação. No PMRR estão previstas algumas realocações dos pontos que estão na linha do encaminhamento natural das águas. Destes locais as pessoas devem ser retiradas. A nossa proposta é que a realocação deve se dar apenas nos casos extremos, até mesmo pela viabilidade. O plano orienta a priorização das obras de drenagem e de contenção de encostas, mas principalmente as de drenagem. Mesmo os terrenos mais frágeis, se forem bem drenados, dificilmente sofrerão deslizamentos. Por outro lado, com o tempo, a erosão e a ação das águas, mesmo a estrutura geotécnica mais bem plantada pode se tornar perigosa. Por isso, não só os pobres são atingidos, mas também as mansões, casas de classe média e alta, construídas dentro de toda a técnica de engenharia. Se não forem observadas, as alterações do encaminhamento natural das águas podem, num processo lento, fazer com que a estrutura se torne uma área de risco. A grande questão é a falta de preocupação com a drenagem.

No PMRR, o Morro do Bumba está definido como área de risco, enquanto o Morro do Céu foi classificado como área de grande risco. Como o senhor avalia a situação atual do Morro do Céu?

O Morro do Céu é uma situação idêntica à do Bumba. A diferença fundamental é que o lixão do Morro do Céu ainda está ativo. A imprensa divulgou que, de imediato, já se decidiu pela retirada da população do morro. Aí já não é uma ação emergencial, mas sim uma atitude preventiva, porém resultante de um clamor popular. O Morro do Céu é uma situação típica de remoção. Não adianta drenar, replantar a vegetação, ali é uma área totalmente imprópria para habitação. Não há alternativa senão a retirada das pessoas.

Sabendo da tradição de nossa política de abandonar tudo o que gestões anteriores realizaram, ainda que em benefício da população, como o senhor encara a descontinuidade da aplicação dos projetos, decorrente de mudanças de administração e de orientações político-partidárias?

A classe política do Brasil, com raras e honrosas exceções, tem evoluído muito pouco em relação às suas atitudes. Infelizmente, as situações clássicas de gestão do voto prevalecem nas decisões administrativas. Eu diria que, em relação à sociedade como um todo, a política tem fracassado em termos de avanço da postura. O servidor público não deve fazer voto de pobreza, mas o que não é aceitável é deixar de tomar certas atitudes por serem eleitoralmente desfavoráveis. Tanto no Rio como em Niterói, depois da tragédia, o que tenho visto é uma mobilização intensa, com máquinas, homens, veículos, equipamentos. Vemos que eles têm os equipamentos, os recursos, mas não há esta mesma mobilização de forma preventiva. A Holanda, por exemplo, é um país que tem um problema típico de drenagem, precisando drenar dia e noite. Pelo menos 20% do país estão abaixo do nível do mar. Já é da cultura da sociedade holandesa que o governante que não cuidar da drenagem, não fizer a limpeza dos canais, não se reeleja. Quando chega o período anterior às chuvas, esta é a prioridade número um. Aqui, quando assumirmos este comportamento, faremos obras preventivas nos meses em que não chove, já que soluções emergenciais são limitadas, pois quando vêm as chuvas, novamente o problemas aparece. Numa reunião do governador com os prefeitos de Niterói e são Gonçalo, fez-se uma estimativa de mobilização de R$ 200 milhões para as encostas, enquanto o PMRR custaria R$ 19 milhões. O discurso da liberação dos recursos no momento da tragédia, que gera visibilidade na imprensa, vai, do ponto de vista prático, se diluir e quando se liberar algum recurso, o problema será outro: o trânsito, a dengue, a segurança pública, enfim, alguma outra prioridade que vai canalizar a atenção de todo o sistema de gestão. O problema passará novamente para segundo plano. Esta lógica tem que se repensada.

Tudo isso obviamente envolve uma mudança de consciência também por parte da população...

Claro. Neste ponto os profissionais da área de comunicação podem contribuir muito. A imprensa acompanhou de perto o processo de elaboração do plano e eu acreditei que daria certo. Infelizmente ainda não foi desta vez. O estudo está parado. 

Voltar para a página principal.

0 comentários:

Postar um comentário