domingo, 8 de agosto de 2010

Morro do Céu, três décadas de inferno

Mais de 50 casas desabaram e cerca de 70 famílias ficaram desabrigadas na comunidade do Morro do Céu, que se estende pelos bairros do Caramujo, Ititioca e Viçoso Jardim, em Niterói. A área é vizinha a um aterro de lixo, interditado provisoriamente pela Defesa Civil Municipal no dia 9 de abril, após dois deslizamentos e a queda de árvores em seus dois acessos. Durante a tarde seguinte, equipes da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros realizaram uma vistoria no local.

Os moradores vizinhos tiveram suas casas interditadas, mas resistiam em deixar o local antes de terem certeza de que receberão indenizações e garantias de que seus bens estarão a salvo. Por outro lado, moradores da Rua Antônio Carlos Brandão não receberam laudo da Defesa Civil. Houve apenas a emissão de uma declaração mediante a apresentação de fotos da situação das casas.

A área onde se localiza o vazadouro do Morro do Céu foi planejada para ser um aterro sanitário, mas, desde meados dos anos 1980, caminhões passaram a despejar ali toneladas de lixo sem tratamento, e a região se transformou numa montanha de detritos visível a quilômetros de distância.

Baixe a linha do tempo do Morro do Céu

Cercada por imagens de santos, dona Conceição vive dias de incerteza

Emily Luizetto e Juliana Moraes

Dona Conceição protesta contra a situação no
Morro do Céu
(Foto: Emily Luizetto)
A casa é modesta, mas ampla: três quartos e um salão, repleto de imagens de santos. Foi construída aos poucos, num terreno de 300 metros quadrados, comprado em 1972, bem antes da instalação do aterro do Morro do Céu. Ali vive a aposentada Maria da Conceição, 68 anos, com o filho e seis netos. Ali é também a sede do Centro Espírita Aldeia das Sete Folhas, onde dona Conceição realiza cerimônias religiosas e coordena atividades sociais comunitárias, como festas para arrecadação de alimentos e outros donativos.

Desde o temporal, a casa está sob risco, rodeada por pelo menos cinco árvores que ameaçam desabar. Porém, quando dona Conceição procurou informações para tentar resolver o problema, descobriu que, se aceitasse o aluguel social, o imóvel seria demolido. “Eles me disseram que, se eu aceitar o cheque-moradia, eles vêm aqui, tiram minhas coisas e derrubam a minha casa. A Prefeitura nem olha se a minha casa está boa ou não”.

Por isso, resolveu não pedir o benefício. “Não quero que eles me tirem daqui, acho que eles deveriam reformar a encosta e a minha casa. Onde eu vou conseguir outra casa própria? Se eu aceitar a Defesa Civil vem aqui e destrói a minha casa. O aluguel social é só por um ano. E depois? O que eu vou fazer?”.

Na montagem, dona Conceição mostra o documento
que recebeu da Defesa Civil e o comprovante de compra do terreno, onde construiu sua casa
Ao mesmo tempo, a aposentada vive aos sobressaltos. “Tenho medo de ficar aqui. Bem perto da minha casa tem uma palmeira muito grande que está prestes a cair. A Defesa Civil ainda não me deu nenhuma resposta. Eu já chamei os Bombeiros várias vezes para cortar as árvores, mas eles dizem que só podem vir depois que as árvores caem”.

A Defesa Civil de Niterói argumentou que, devido a grande número de chamados, a demora no atendimento é comum, mas todas as localidades serão atendidas. Porém, no caso específico do Morro do Céu, ainda não há previsão de atendimento. O Corpo de Bombeiros de Niterói não se pronunciou sobre o caso.


Galeria:

No Morro do Céu, o poste desabado bloqueia a passagem. Muitas casas estão sob risco. Na sequência, dona Conceição caminha pelo acesso à sua casa, aponta aspectos da destruição e mostra a sua cozinha.

Fotos: Marcela Sorosini e Emily Luizetto




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Aterro interditado, fim do sustento

Marcela Sorosini e Renata Monteiro

(Foto: Marcela Sorosini)
Com a interdição provisória do aterro do Morro do Céu, parte da população local perdeu seu sustento. Dulcilene Alves, de 46 anos, sustentava seus quatro filhos com seu trabalho ali. A catadora teve sua casa atingida pelas chuvas e não pôde retirar seus pertences, pois o acesso está tomado por árvores caídas e pelos escombros das casas destruídas. “Estou desesperada, perdi tudo e não consigo buscar o que sobrou. Estou com medo de entrar na minha casa, parece que as paredes estão moles”, descreve Dulcilene.

A moradora reclama ainda que os políticos só aparecem no Morro do Céu em período eleitoral e fazem inúmeras promessas, mas é só. Segundo ela, um candidato chegou a prometer a pavimentação da Rua Antônio Carlos Brandão, nem que para isso fosse precisar “tirar do seu próprio bolso”, mas a obra não foi realizada.

As dificuldades no abrigo improvisado

Assim como Dulcilene, cerca de 70 pessoas, entre adultos e crianças, ficaram instaladas em uma creche da prefeitura, que apesar disso continuou com as suas atividades normalmente. As salas de aulas se transformaram em quartos, que por muitas vezes eram ocupados por três famílias ao mesmo tempo. Além do desconforto e da falta de espaço, essas pessoas ainda tinham que sair das salas às 7h e só podiam retornar após às 14h, quando terminam as atividades escolares.

Os desabrigados começaram a receber o aluguel social no dia 4 de maio, mas não adiantou muito. “Com esse dinheiro nem no morro a gente consegue alugar alguma coisa. Além disso, teremos que pagar luz, água e comprar coisas para a casa, pois perdemos tudo! É um absurdo o que estão nos pagando”, reclamou o morador Marcos dos Santos.

Os moradores contam que as doações nas semanas posteriores à tragédia diminuíram. Os alimentos não perecíveis eram suficientes, entretanto, faltavam material de limpeza, biscoitos e achocolatados. Os desabrigados lamentavam a ausência de temperos, frutas, legumes, verduras e carne.

Uma desgraça encobre a outra

Outra reclamação foi contra o descaso do poder público e da imprensa, que tinham todas as atenções voltadas para o Morro do Bumba. “Aqui nós também estamos sofrendo, aqui também morreu gente, mas a televisão só mostra o Bumba”, reclamou Juliana Pereira. Moradores relatam que helicópteros de grandes empresas de comunicação passavam direto por áreas afetadas sem filmarem o local, indo direto para o Bumba.

No dia 7 de maio, exatamente um mês após a tragédia, os desabrigados foram transferidos para o 3º Batalhão de Infantaria. Segundo eles, o 3º BI fica em uma região onde predomina uma facção criminosa rival à atuante no Morro do Céu. Além disso, os moradores ficam mais distantes de seus locais de trabalho. É o mesmo problema enfrentado pelas crianças, que não recebem bilhete para o transporte e vão sozinhas a pé para a escola.

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Um mês após a tragédia, continua o impasse entre moradores e governo

Carolina Custódio, Felipe Siqueira, Filipe Cabral e Júlia Bertolini

Montanha de lixo, Morro do Céu
(Foto: Carolina Custódio)
Com 36 anos vividos no Morro do Céu, um dos líderes da comunidade, Luciano Cruz Silva, denuncia que “o lixão veio crescendo, crescendo, crescendo e hoje o cara abre a porta da cozinha e dá de cara com a montanha de lixo”. Em desabafo, o técnico em enfermagem comparou a situação à do Morro do Bumba: “A situação que vocês acompanharam no Bumba do mau cheiro e do chorume, o próprio secretário de Segurança dizendo que aquilo causa um malefício enorme você respirar, as pessoas se sentindo mal, os cães farejadores... Nós aqui estamos em situação pior que os cães farejadores da polícia. Aqui nós convivemos com isso há 25 anos”.

De acordo com Luciano, há cerca de quatro anos os moradores organizaram um comitê para discutir com a prefeitura de Niterói a questão do tratamento do lixo na região. No período das chuvas, em abril, os moradores disseram ter se assustado com estrondos e deslizamentos de terra no lixão. No entanto, a Companhia de Limpeza de Niterói (Clin) alegou que não se tratava de explosões ocasionadas por gases tóxicos, como no Bumba, mas apenas uma erosão de material superficial.

Veja o vídeo da entrevista com Luciano: parte 1.

Quanto vale?


Apesar da interdição da unidade de depósito de lixo, e de visitas de autoridades civis e do Ministério Público, o impasse permanece. Os moradores garantem que o Ministério Público e a Defesa Civil teriam interditado aproximadamente 200 casas, tendo em vista a iminência de futuros deslizamentos e a intenção de construir um aterro sanitário no lugar. Porém, nem 20% das propriedades teriam sido indenizadas até o momento. Luciano afirma que a proposta do governo não corresponde ao valor real das casas e, além disso, seria exigida uma burocracia que os moradores não conseguem cumprir.

“Vocês sabem da burocracia e dos valores altíssimos para tirar uma escritura. Você tem que ter um engenheiro, advogado, arquiteto. E para eles fazerem a indenização aqui, eles estão querendo o RGI. Eu desempregado, com dois filhos. Como é que eu vou hoje custear um advogado, um engenheiro, certidão de ônus reais, certidão de não sei o quê, certidão de não sei que lá, para conseguir tirar um RGI para uma casa que vai virar lixo, que vai virar um aterro sanitário”, argumentou o morador, que lembra que a maioria das propriedades foi adquirida por contrato de compra e venda há mais de cinco décadas.

Embora o próprio governador Sérgio Cabral, em entrevista, tenha considerado a situação do Morro do Céu calamitosa, centenas de pessoas têm sido obrigadas a permanecer no local por falta de recursos, como é o caso de Vera Lúcia dos Santos, residente ali há mais de 30 anos.

Veja o vídeo da entrevista com Luciano: parte 2.

Vera Lúcia, moradora do Morro do Céu há 32 anos,
teve sua casa interditada
(Foto: Carolina Custódio)
Vera é uma das que ainda não conseguiram receber a indenização pela casa, embora já tenha a documentação em mãos. Além disso, a aposentada reclama que os R$ 400 recebidos através do aluguel social, fornecido pelo Governo do Estado, não são suficientes para cobrir as despesas mensais. A costureira lamenta o fato de, por enquanto, não conseguir nem mesmo receber parentes e amigos em casa.

"Há muito tempo a gente não sente um cheiro de um alimento bem feitinho, de uma comida. A gente limpa a casa e não sente um cheirinho de casa limpa. Vivemos uma vida impedidas de fazer muita coisa. Como no meu aniversário. Fizeram um churrasco para mim e eu tampei tudo e levei para a casa da minha irmã. Não havia condições, ou você comia com mosca ou não comia”, relatou Vera Lúcia.

Veja o vídeo da entrevista com Vera Lúcia


Galeria:



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