quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Os meios não justificam os fins: a (in)segurança diante dos privilégios

Tatiana de Carvalho

Existe no consciente brasileiro o mito de que o país não é violento. Essa mitologia de não-violência do Brasil parte de dois procedimentos principais (CHAUI, 2010, p. 125). Um deles é a exclusão. A afirmação de que o povo brasileiro não é violento cria a ideia de que a violência no país é praticada por quem não faz parte dele, mesmo que tenha nascido ou sido criado no mesmo. Através da exclusão há a separação de um “nós” de um “eles”. A forma como a mídia aborda confrontos entre traficantes é um exemplo dessa separação. O discurso jornalístico produz uma individualização pelo tráfico. A imprensa transmite a ideia de que o fim do comércio ilegal de drogas está associado à morte ou à prisão de um ou outro indivíduo. Essa produção legitima a violência pelo Estado e justifica a morte pela polícia.

Um exemplo é o que aconteceu à adolescente Karla Rose Milor Satyro. Durante um conflito entre duas facções no morro Dona Marta, em 1987, a jovem foi escolhida como a corporificação daquele mal. Uma foto dela com sorriso no rosto e arma na mão foi primeira página no Jornal do Brasil e no Última Hora. Dias depois, outra imagem apareceu em uma matéria da revista Veja. A exposição da adolescente fez com que ela se tornasse a inimiga número um da segurança pública do Rio de Janeiro. “Foi caçada até ser morta numa alegada troca de tiros", conta o fotojornalista Ricardo Beliel em um relato divulgado no artigo “Mulher na favela e confronto policial: por um arquivo de imagens”, de Bethania Mariani e Marise Medeiros.
Foi a partir dessa ideia de um “nós” e de um “eles” que o Rio de Janeiro tornou-se uma cidade de sítios nas áreas nobres. O psiquiatra e psicanalista Joel Birman mostra na obra “Cadernos sobre o mal”, de 2009, como parte da sociedade carioca tornou-se sitiada. A criminalização da pobreza pode ser considerada a origem desses sítios.
Uma característica marcante do Rio de Janeiro é a presença de favelas no centro urbano. Enquanto em outras cidades as classes populares estão afastadas da elite econômica, na capital fluminense elas convivem lado a lado.
A proximidade não agrada os moradores com maior poder aquisitivo. A mídia não só não faz o contraponto, como reforça que a presença das favelas no perímetro urbano está ligada à insegurança do Rio. Um exemplo é uma matéria do Jornal do Brasil de 2009. Sob o título “Mesmo com suas qualidades, bairro sofre desvalorização”, a reportagem chama a atenção para a queda na procura de imóveis por causa da violência. Em um determinado trecho fica clara a associação das favelas à desvalorização imobiliária. “Vasconcelos traça um paralelo entre Santa Teresa e a Tijuca, outro bairro repleto de favelas e onde os imóveis também se desvalorizaram”, diz a reportagem.
Segundo Birman, as classes populares e a dominante coabitam sem que a economicamente inferior seja expulsa para a periferia. Pelas reportagens acima é possível ver que a vontade por essa expulsão existe. O que, posteriormente no texto, o filósofo vai chamar de “tentativas” de afastar a população pobre, de fato levou parte significativa desses moradores para bairros distantes.
Nos anos 1960, o então governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda criou uma política de erradicação sistemática das favelas do Rio de Janeiro. Tratavam-se das remoções. E se não passaram de tentativas nos primeiros anos daquela década, a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1964, e da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM), em 1968, mudaria a situação. Em cinco anos, foram removidos 175.000 moradores de 62 favelas na cidade (BRUM, 2011, p. 137). A maioria foi transferida para conjuntos habitacionais nas zonas Norte e Oeste, considerados os subúrbios da capital fluminense. Como o total de habitantes em favelas no início de 1960 era de 335.000 (BRUM, 2011, p. 81), o número de transferidos corresponde a aproximadamente 50%. Os dados são provas de que as classes populares foram expulsas para a periferia.

Olimpíadas e Vila Autódromo
O passar dos anos não erradicou a existência das remoções. Com o Brasil palco dos megaeventos esportivos, a prática voltou a ser constantemente usada. Uma atual vítima é a Vila Autódromo, na Zona Oeste da cidade. Segundo o jornal El País, quase 70% das famílias que viviam na comunidade foram removidas desde fevereiro de 2014, quando se iniciaram as remoções, até agosto de 2015, data de publicação da matéria “Remoções na Vila Autódromo expõem o lado B das Olimpíadas do Rio”. A comunidade estava localizada ao lado do Parque Olímpico, que foi o principal centro de atividades das Olimpíadas de 2016.
O aumento da circulação de matérias em que o Rio de Janeiro é retratado como uma cidade violenta a partir de 1980 fez a aprovação pela política de remoção crescer entre as classes de maior poder aquisitivo. Matérias sobre a violência no Rio de Janeiro passaram a ser publicadas diariamente. O fotojornalista Ricardo Beliel conta que, a partir dos anos 1980, os confrontos entre traficantes passaram da editoria de Polícia para as denominadas Cidade ou Rio e tornaram-se destaque nas primeiras páginas de jornais e noticiários da TV (MARIANI; MEDEIROS, 2011, p. 88). A cobertura constante e em tom sensacionalista é uma das responsáveis pela inscrição do pânico no imaginário social.
Na penúltima década do século XX, houve uma alta nas taxas de violência da cidade, abordada tanto no relado de Ricardo Beliel, disponível na obra de Bethania Mariani e Vanise Medeiros, quanto no capítulo “Sociedade sitiada” do livro de Joel Birman. Porém, esse crescimento não é o único responsável pelo sentimento de que o Estado e a polícia não conseguem garantir a segurança pública. Além da já citada cobertura midiática, a ideia de que o governo é um prestador de serviços e o cidadão, seu cliente, também cria esse imaginário.
O jornal O Globo fez uma matéria em 2012 cujo título é “Moradores cobram contrapartidas ao aumento de IPTU para 2014”. Em um trecho, uma entrevistada diz que “a prefeitura tem que mostrar serviço antes de querer cobrar mais dos moradores”. A fala reforça a ideia de que o Estado deve assumir “o papel de administrador e fornecedor de serviços, mais do que [de] provedor” (VAZ; SÁ-CARVALHO; POMBO, 2005, p. 10).
A ideia de que o Estado é uma empresa de serviços, em que quem paga o “pacote” mais caro deve ter mais benefícios e a crença de sua incapacidade em tal feito fizeram com que as classes dominantes procurassem “se proteger com seus próprios meios” (BIRMAN, 2009, p. 274). Porteiro eletrônico, interfone, sistema de alarme e de vigilância por televisão, grades de ferro e cercas elétricas. Foram esses os recursos da elite econômica para se proteger da violência do Rio de Janeiro. As casas e prédios passaram a parecerem prisões em que os próprios donos se encarceravam após certo horário da noite, o que esvaziou praças públicas e ruas ao anoitecer. Ações que podem ser denominadas como privatização do sistema de segurança. Esta era a oportunidade que a indústria de segurança precisava para se instalar no Rio de Janeiro e no Brasil (BIRMAN, 2009, p. 279), já que a cidade foi pioneira no país.
A decisão por privatizar a própria segurança não vem apenas na crença de incapacidade do Estado de dar proteção. Não é com reforço do patrulhamento e armamento policial que a violência diminuirá, mas sim com investimentos públicos em educação, saúde e habitação de qualidade. Mas, “se o Estado investisse de fato em políticas sociais, isso implicaria a perda de privilégios das elites” (BIRMAN, 2008, p. 278). Na garantia de segurança, o pensamento permanece no campo particular: se as classes dominantes acham que não obtém privilégios suficientes nos serviços do Estado, elas vão atrás para obtê-los de outra forma. Por isso, uma política contra a violência mais efetiva não foi demanda.
A escolha de garantir a segurança particular e não a da coletividade não só reforçou privilégios como aumentou a vulnerabilidade das classes dominadas à violência. O Estado passa a se preocupar menos com a segurança pública, já que a elite encontrou meios de se proteger sozinha. A parte da população que não pode pagar por tais recursos fica vulnerável a ser vítima por ser uma “presa” mais fácil. Essa parcela também se torna ainda mais desprotegida já que, se o Estado já era ausente antes, com os meios escolhidos pela elite para garantir sua segurança, ele passa a estar ainda menos presente.

Criminalização da pobreza
As favelas tornam-se, então, “terra de ninguém”. A não presença do governo cria o local ideal para o narcotráfico e o crime organizado se instalarem. Não existe relação entre pobreza e os delitos. O que existe é uma ligação entre a ausência do Estado e a presença do crime. Mas essas conexões não são pautas para a mídia brasileira. Pelo contrário. A imprensa publica matérias que cada vez mais criminalizam a pobreza.
Um exemplo recente é a morte de um jovem no final de fevereiro de 2016 no Conjunto de Favelas na Maré, localizada na zona norte do Rio. Na reportagem intitulada “Jovem é morto durante operação policial na Maré, Rio”, o portal G1 dá espaço para a polícia justificar a morte do rapaz de 19 anos. Segundo o órgão, Igor Firmino da Silva foi morto em uma troca de tiros com a polícia na qual teria a sua participação. Na reportagem, há a informação de que a polícia teria encontrado com o jovem uma pistola, um rádio e três coletes a prova de bala. O caso e a cobertura jornalística geraram um debate nas redes sociais. Além das manifestações de moradores da comunidade que afirmaram que Igor não tinha qualquer envolvimento com o tráfico, o questionamento feito por parte dos internautas foi: se o adolescente estivesse com coletes, não teria vestido um para se proteger dos tiros?
Segundo os autores do artigo “Risco e sofrimento evitável: a imagem da polícia no noticiário de crime”, devido ao vinculo espacial e midiático com traficantes, moradores das favelas são qualificados como ‘criminosos virtuais’, o que justifica a existência de dúvida sobre a inocência deles caso sejam feridos ou mortos por policiais (VAZ; SÁ-CARVALHO; POMBO, 2005, p. 20).
A prova de inocência de uma vítima moradora de favela também não muda a situação por completo. Surge, com ela, a ideia de que toda guerra requer sacrifícios ou que foi feita por uma “fruta podre” da polícia, já que, assim como o Brasil, a polícia é vista como instituição responsável por garantir a ordem. O Estado é não-violento.
Não seria o abandono pelo Estado uma violência? Não seria a existência de privilégios de uma classe social em detrimento de outra também uma violência? Afinal, foram essas circunstâncias que permitiram a disseminação de grupos criminosos nas favelas. Sem falar que, com o alto capital acumulado com o narcotráfico, há dinheiro suficiente para subornos. Um exemplo foi a prisão de policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) por envolvimento com o tráfico de armas e drogas em dezembro de 2015. A denúncia era de que os funcionários da corporação repassavam informações sobre operações. As matérias tratam os detidos como suspeitos, ao contrário do que é feito quando se tratam de traficantes.
O artigo de Joel Birman chama a atenção para a impossibilidade de funcionamento do comércio ilegal de armas e drogas caso não houvesse participação não só da polícia, como também do Estado e do Poder Judiciário. Afinal, “como armamentos altamente sofisticados entram com facilidade pelos portos e aeroportos, sem a participação direta do poder político” (BIRMAN, 2009, p. 298)?
Outra dúvida que permeia o imaginário é: com o alto capital em torno do tráfico de drogas, os varejistas de drogas não teriam melhores condições de vida? Não morariam em habitações mais estruturadas do que casas sem acabamento no alto de um morro? Como afirma o psicanalista, os chefes das facções criminosas “são apenas a ponta do iceberg de organizações muito mais poderosas que se inscrevem não apenas na polícia, mas nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo do país" (BIRMAN, 2009, p. 290).
Assim como a estratégia do Estado é criminalizar os moradores de favela, “diante do mal-estar e da violência social legítima que implodiu, provocada pelas exclusões e marginalizações maciças” desse segmento da população (BIRMAN, 2009, p. 291), a mídia também se exime de responsabilidades. Em agosto de 2013, o grupo Globo fez um editorial em que admite que errou ao apoiar o golpe militar de 1964. Surge então a dúvida: quando haverá também um pedido de desculpas da imprensa tradicional brasileira sobre a cobertura que por anos foi feita em relação às favelas cariocas? Alias, quando essa cobertura irá mudar?
É preciso “outra política de segurança pública que não seja nem a da criminalização da pobreza [...], nem tampouco a sua privatização, mas que implemente políticas sociais que possam em curto, médio e longo prazos proteger as populações marginalizadas das organizações criminosas" (BIRMAN, 2009, p. 291). Afinal, essas “organizações de narcotráfico se constituíram efetivamente como um poder paralelo” (BIRMAN, 2009, p. 287), o que isola ainda mais as favelas da sociedade já que passaram a ser administradas por esse poderio.
Além das responsabilidades da mídia e do governo, é preciso lembrar também da responsabilidade da audiência. A mesma classe que é favorecida no Brasil é o público-alvo de jornais e revistas tradicionais. Um exemplo é a resposta dos leitores do jornal Extra a uma matéria publicada em maio de 2015. O título era “Menor suspeito de morte na Lagoa deixou a escola aos 14 anos, só viu o pai duas vezes e era negligenciado pela mãe”. Os leitores acusaram o jornal de inocentar o jovem acusado. Como disse a jornalista Eliane Brum no artigo “A imprensa que estupra”, “quem legitima o mau jornalismo é justamente esse tipo de comentário”.







0 comentários:

Postar um comentário