segunda-feira, 23 de maio de 2016

Favela: uma análise crítica das remoções do século XX e da instalação de UPPs no século XXI





Por Bárbara Queiroz e Marry Ferreira


Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa e que agora também é olímpica, moldada a cada evento para inglês ver. O mesmo Rio que, há um século, Pereira Passos tentou transformar na nova Paris através de uma reforma urbanística que destruiu cortiços do centro da cidade, separando famílias entre a periferia e o morro, dando origem às favelas. Desde então, historicamente, o Rio de janeiro cresce sob moldes ambíguos de governos que promovem pacificação por meio da violência, disseminando a ideia de que é preciso ocupar e pacificar para depois implantar políticas públicas, ou seja, primeiro entra a força e depois os serviços. O modelo mais recente dessa pacificação é a UPP - Unidade de Polícia Pacificadora - instalada nas favelas para segurança da população, na teoria, e, na prática, para atender aos interesses de uma cidade que recebe grandes eventos e precisa fortalecer sua segurança para turistas. Com isso, o que percebemos hoje é um retrato da "modernização conservadora" de uma cidade que sempre se forjou através da construção de diversas formas de relacionamentos sociais e cidadania baseada no capital econômico, no impedimento dos direitos sobre o corpo e da vontade soberana da grande maioria da população.
            Historicamente, governos tentam tirar os moradores da favela de sua “condição de favelado”. Nos anos 90, o projeto Favela-bairro tentou urbanizar essas regiões do Rio de Janeiro e, segundo o sociólogo Marcelo Burgos, a chave para entender o porquê dessa tentativa é analisar o pensamento da sociedade do asfalto: pensar a favela como um grupo que precisa e tenta ser cidade. Ou seja, o favelado é um "cidadão de segunda classe" que não é parte do “nós” da cidade, violento de tal modo que é preciso pacificá-lo para controlá-lo, a fim de que não ofereça mais risco para os cidadãos. O mito da cultura da violência dos favelados reafirma e consolida a barreira entre "eles" e "nós". O importante não é ter a favela “controlada” para quem vive lá, mas para a cidade ao seu redor.


  O documentário “Remoção” (https://www.youtube.com/watch?v=AdLeAH5NvTo), de Luiz Antônio Pilar e Anderson Quack, retrata bem esse sentimento à medida que aborda o processo de remoção de favelas da Zona Sul nos anos 60, que deu origem a comunidades como a Vila Kennedy, Vila Aliança e Cidade de Deus, na Zona Oeste. Desde o anúncio das remoções, observou-se um caráter ditatorial, que expressa essa realidade do olhar da cidade em relação às favelas, vistas como o “câncer da cidade”. O documentário também descreve a agressão das autoridades e a ausência do sentimento do espaço como algo de valor para as pessoas daquele lugar.
            Ao longo dos anos, as favelas se expandiram também pela localização estratégica do local de trabalho. Muitos trabalhadores diminuíam seus gastos com transporte e minimizavam o tempo no trânsito, usando o tempo extra, muitas vezes, para arrumar um segundo emprego e aumentar a renda familiar.  Marcelo Burgos afirma em seu texto "Favela: uma forma de luta pelo direito à cidade" (In: Favelas cariocas: ontem e hoje) que a favela é “como um instrumento de luta pela cidade”. Através dela seria possível acessar serviços urbanos que lhes eram negados pelo poder público, como o abastecimento de água e fornecimento de energia elétrica que, apesar de não serem de qualidade e regularizados, eram acessíveis a baixíssimo custo. Nesse sentido, pode-se dizer que a favela existia ao mesmo tempo como equivalência da precariedade da condição do trabalhador, que buscava moradia mais acessível, e como materialização dessa precariedade, já que não contava com serviços de qualidade e urbanização adequada.
            O discurso da retirada da “condição de favelado” se fez presente durante a remoção na reforma de Pereira Passos (1902-1906). O aspecto do capital imobiliário e da lógica econômica está presente em quase toda a obra de Quack e Pilar. Discursos de “estamos retirando para dar condições melhores”, sempre enfatizando o risco à saúde e a precariedade das residências atuais, aparecem como justificativa para o despejo de centenas de famílias dos locais onde construíram sua história e suas raízes. Mas, hoje, as mesmas áreas estão ocupadas por edifícios destinados à classe alta, que nos leva a reforçar a ideia de que o problema não era a área habitada, mas por quem ela estava sendo habitada. Seria o local um “risco” para as pessoas que ali moravam, ou estas mesmas pessoas um “risco” para o mercado imobiliário e a lógica financeira?
            Se olharmos a história e o documentário, a retirada dessas pessoas de suas residências em caminhões e a separação das famílias que foram distribuídas para outras regiões nos faz lembrar os navios negreiros que transferiam a população negra e pobre em condições precárias. No entanto, o filme também retrata outro lado, a questão dos moradores que sofreram com essa situação, mas que se apropriaram do novo espaço, fazendo dali uma “nova favela” onde arrumaram um jeito de resistir à violência sofrida e se reinventaram.
            Segundo um dos ex-moradores do Parque Proletário, o que ocorreu ali “não foi uma remoção, foi uma expulsão” e, apesar de o discurso das novas moradias enfatizar a abundância de serviços e infraestrutura, a realidade foi muito diferente. Se antes boa parte dos trabalhadores havia recorrido à favela como forma temporária ou permanente de habitação devido à sua localização estratégica e baixo custo, assim como a proximidade da família e de acesso à cidade, agora não havia mais nada em volta. Nem cidade, nem trabalho, nem transporte, nem família. Esses acontecimentos tiveram então três efeitos visíveis no documentário "Remoção" e na realidade das pessoas: aprofundou a segregação espacial das classes baixas, atendeu ao desejo do setor de construção e mercado imobiliário e desorganizou a vida de diversos trabalhadores e famílias.

Da ficção para a vida real
A Cidade de Deus, que depois acabou inspirando um filme, surgiu logo após a remoção das favelas do Centro e da Zona Sul. Na obra ficcional de mesmo nome, dirigida por Fernando Meirelles, observamos já nas primeiras cenas como as características do local têm referências com a descrição dos moradores no documentário "Remoção": um lugar sem luz, sem asfalto, longe de tudo. O personagem Buscapé, que narra todo o enredo com um olhar próprio, cita uma frase interessante: “Não tem onde morar, nem pra onde mandar, manda pra Cidade de Deus” que depois retoma “pro governo dos ricos, o nosso problema não importa, a Cidade de Deus fica longe do cartão postal do Rio de Janeiro”.
O longa-metragem traz à tona, ainda, a relação entre a polícia e o favelado, além de outra questão que vai além da favela, mas que a sociedade naturaliza como "coisa da favela": o crime. Fortemente presente na cidade, o tráfico de drogas é uma das questões centrais no filme "Cidade de Deus". Longe das telas de cinema, a problemática é real no Rio de Janeiro: o tráfico atrelado a uma polícia corrupta que participa do crime e que faz parte do contexto da cidade. Como ressalta Buscapé, “a polícia faz sua parte, recebe o dela e não perturba ninguém”. Os mortos são silenciados, corpos são ambientados para cobrir uma situação que muitas vezes não existiu.  A polícia faz sua parte para conseguir dinheiro do tráfico, situação observada principalmente quando negocia a libertação do Zé Pequeno em troca de dinheiro ( “Vamos começar, Pequeno. Temos que acertar nossa conta”) ou quando faz uso de discursos preconceituosos (“Desde quando roubar preto ladrão é crime”).
Durante o filme, percebemos, ainda, a dicotomia: se morar numa favela não transforma, automaticamente, uma pessoa em delinquente (e percebemos que em sua maioria não o são), por outro lado vemos que a favela constitui um espaço que reúne diversos fatores, como a segregação econômica e racial, que favorecem situações de abertura para a entrada do jovem no caminho do tráfico e da ilegalidade. Em diversas cenas ao longo do filme vemos menores tentando fazer parte das gangues, que se apresentam como seu modelo de conduta, pois são os únicos que aparentam atingir os padrões de valores considerados na comunidade, ainda que Marreco fale para Buscapé, seu irmão mais novo: “Você é inteligente. Você tem que estudar”. O personagem de codinome “Filé com fritas”, que se justifica “eu fumo, eu cheiro, já matei, já roubei, sou sujeito homem”, é o retrato de crianças que crescem tendo em mente que só serão alguém se tiverem poder na favela, onde podem vir a ser autoridade, como Zé Pequeno já havia sido um dia.

O poder das milícias
Após a década de 90, houve uma expansão dos grupos organizados que alterou a dinâmica criminosa no Rio de Janeiro, os milicianos - integrantes das forças de segurança que tornaram mais complexa a organização do crime organizado -, vistos como "mal menor". Em "As Unidades Policiais Pacificadoras e os novos desafios para as favelas cariocas" (In: Favelas cariocas: ontem e hoje)Jaílson de Souza observa que os grupos criminosos se legitimaram nos territórios populares a partir da capacidade de regularem a ordem social. A incapacidade (ou desinteresse) das forças de segurança do Estado para garantir uma presença regular nesses territórios já era histórica e permitiu que esses grupos construíssem um processo privado para regulamentar esse espaço público, reprimindo os crimes contra o patrimônio dos moradores daquela localidade e se legitimando como os ordenadores locais.
Nesse processo, o surgimento de desavenças dos grupos rivais criminosos fez aumentar a disputa por território. A necessidade de ampliação da força bélica nas favelas foi visto como inevitável, naturalizando o grande número de mortos no confronto tráfico x polícia. O medo da “favela descer para o asfalto” fez com que o Estado entrasse não para garantir a segurança da favela, mas para mostrar que estava ali presente para que toda essa violência não chegasse ao asfalto. O grande número de mortos nas operações de agentes de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e o silêncio sobre esses mortos, assim como a violação de direitos dos moradores, começam a demonstrar o fracasso desse modelo de enfrentamento de um tráfico que não diminui. Ainda que as atitudes da polícia pacificadora sejam vistas como política de garantia do direito fundamental à liberdade e ao direito de ir e vir dos moradores das favelas, o que vêm depois e as consequências da forma como se estabelecem precisam ser discutidas.
O primeiro passo da ocupação é a entrada do Batalhão de Operações Especiais (BOPE). Garantida essa ocupação, um número de policiais proporcional à quantidade de moradores começa a ocupar parte do local. Após isso, há uma “instalação de fato”, na qual comandante e comandados intervêm na rotina da comunidade buscando acabar com o tráfico. Posteriormente o Estado faz um diagnóstico sobre a situação da favela com uma bandeira: vermelha, amarela ou verde, representando a necessidade de uma nova intervenção ou não. Com isso, as UPPs são vistas como exitosas para a segurança no Rio de Janeiro e, como menciona Jaílson, “mais do que isso: a expectativa é que a experiência se torne um modelo para os grandes centros urbanos e possa deter a crescente perda do controle de parcelas significativas do território urbano para os grupos criminosos.” No entanto, é preciso lembrar que essa experiência trouxe problemas para as favelas "pacificadas", como a instalação de empresas e a ausência da informalidade de alguns serviços, como luz e internet. Se antes o Estado não estava presente e não regulava esses serviços, agora alguns moradores são obrigados a se mudar, pois o pagamento de taxas e impostos não permite que possam levar a vida com baixo custo.
Em última análise, enquanto muitos moradores do asfalto, os autointitulados "cidadãos de bem", clamam por um Estado Mínimo, a realidade nas favelas é parecida com um Estado Mínimo, que apenas intervém na favela quando o “problema” desce o morro. É possível observá-lo na favela, porém intervindo autoritariamente no dia-a-dia dos moradores.
Ao analisar as situações descritas no texto acima com um olhar hobbesiano, pode-se concluir que os moradores do asfalto foram os únicos signatários do contrato social, ou seja, os únicos que têm seus interesses protegidos pelo Estado, como se o jusnaturalismo de Hobbes, que prega a garantia da vida acima de tudo, não entrasse na favela, tornando assim o “favelado” o mal que assombra e que tira a paz dos demais cidadãos, algo que deve ser combatido pelo Estado. E o que ele leva até a favela é assustadoramente parecido com o Leviatã de Hobbes.
Voltando ao texto de Jaílson, “cabe ao poder público; às organizações da sociedade civil; às universidades; às associações empresariais conscientes da importância do desenvolvimento sustentável; e aos moradores das comunidades populares se articularem para que as boas notícias e práticas trazidas pela ação policial redundem em um processo de desenvolvimento profundo, duradouro, a ser apropriado, de fato, pelos moradores das favelas cariocas e pelo conjunto da cidade. Essa é a tarefa que cabe a todos nós”.


Referências:
BURGOS, Marcelo Baumann. "Favela: uma forma de luta pelo direito à cidade". In: Favelas cariocas: ontem e hoje. MELLO, Marco Antônio da Silva …[et al.]

SILVA, Jaílson de Souza e. "As Unidades Policiais Pacificadoras e os novos desafios para as favelas cariocas". In: Favelas cariocas: ontem e hoje. MELLO, Marco Antônio da Silva ... [et al.]

BATISTA, Vera Malaguti. “O alemão é muito mais complexo”. In Paz armada. Criminologia de cordel. Ana Luiza Nobre ... [et al] Vera Malaguti Batista (org.)

HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2006.

REMOÇÃO. Direção: Anderson Quack e Luiz Antônio Pilar. Rio de Janeiro: Lapilar produções artísticas, 2013. 85min.


CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles. Rio de Janeiro: Globo filmes, 2002. 135min.

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