terça-feira, 10 de agosto de 2010

Morro do Bumba, dois meses depois

Texto e Fotos: Laís Carpenter e Priscila Motta

Tapumes e escavadeiras na entrada
do que restou do Bumba
Dos instantes de correria, pânico e desespero do dia 7 de abril restaram apenas duas escavadeiras, tapumes cercando o local, o chorume escorrendo pela terra ainda umedecida, lixo, destroços de casas e escombros do que sobrou do Morro do Bumba.

Defensora pública denuncia ilegalidade na demolição de casas em Niterói

Emily Luizetto

A defensora pública Maria Lúcia de Pontes denunciou que a prefeitura de Niterói vem demolindo de maneira arbitrária, indiscriminada e ilegal moradias situadas nos morros que sofreram deslizamentos durante o temporal do início de abril. “A Defesa Civil liberou apenas um auto de interdição para as casas, esse auto não permite que eles destruam nada”, disse ela. “As avaliações feitas nas casas são apenas visuais e sem nenhum estudo aprofundado. Antes da demolição deve ser feita uma avaliação com engenheiros e geólogos para elaboração de um laudo técnico conclusivo que condene as moradias, e um projeto de reassentamento das famílias”.

Morro Boa Vista, São Lourenço: “O medo maior é que ninguém mais olhe por nós”

Marcos Abreu e Maira Renou

Foram sete mortos no Morro Boa Vista, em São Lourenço, Niterói. Os próprios vizinhos retiraram os corpos, porque o número de bombeiros era insuficiente. Cerca de 70 casas foram atingidas e há muitas outras sob risco. Moradores relatam que a Defesa Civil ainda não chegou ao local e que só após cinco dias dos deslizamentos apareceram dois médicos, que trabalharam ali por dois dias e nunca mais retornaram. Falar da tragédia que deixou um rastro de dor e desespero no local é voltar na madrugada do dia 6 de abril e se lembrar de tudo o que foi perdido com a chuva. Alguns moradores preferem o silêncio, outros colocam seus filhos para darem depoimentos.

Quatro abrigos estão funcionando no local. Um deles é a Igreja São Lourenço dos Índios, que acolhe cerca de 200 pessoas. Os bancos da nave foram afastados para dar lugar a colchões e roupas espalhadas por um espaço que ficou pequeno para tanta gente. A área dos fundos da igreja se transformou no quintal de uma grande casa, com varais de roupas, crianças correndo e senhoras sentadas à espera de algum sinal. Até ir ao banheiro passou a ser uma tarefa difícil. Há apenas dois banheiros químicos do lado de fora, emprestados por uma empresa privada.
Na igreja, jovens se distraem jogando videogame

Em tom de determinação e olhar de tristeza, Andréia dos Santos Almeida, uma das coordenadoras do abrigo, moradora da comunidade e voluntária, relata:

“Todas as áreas do abrigo foram improvisadas e estão sendo mantidas pelos próprios desabrigados. No inicio tínhamos alguns problemas de convivência, mas isso está melhorando. A vida agora está retomando, muitos dos adultos já voltaram para o trabalho e as crianças para a escola. O problema é que quando uma situação não choca mais, que ela é normal, as coisas se acomodam. O medo maior é esse, que ninguém mais olhe para os desabrigados que ainda estão sofrendo demais, eles tem que dividir uma sala às vezes com mais de 10 pessoas e nem da mesma família são”.

O amparo ao idoso na creche 

Ferido na perna, Valdir recebe tratamento
na creche Nilo Neves
Em outro abrigo da comunidade, a creche municipal Nilo Neves, há aproximadamente 130 pessoas. Entre elas, 10 feridos que recebem cuidados de uma única enfermeira voluntária, e muitos idosos. Valdir Barros, um senhor de idade, por exemplo, mesmo com o telhado do seu barraco prestes a desabar, quis permanecer nele, sozinho, com um ferimento sério na perna direita. Foi encontrado vagando na rua e recolhido para a creche. A área onde costumava morar está interditada. É possível ver outras casas abandonadas, vazias. Famílias que deixaram para trás o pouco que tinham. E pior do que isto são as moradias que foram afetadas, parcialmente destruídas ou com risco iminente de desabar, ainda habitadas.

As atividades desta creche voltaram a funcionar parcialmente. Valéria Gomes, voluntária que está à frente deste abrigo contou que na parte da manhã as crianças e idosos vítimas dos desabamentos são assistidas pelos funcionários da creche, enquanto no período da tarde as aulas foram retomadas. Em escolas com um número maior de desabrigados, menor infra-estrutura e organização, não há nem mesmo a hipótese dessas atividades em “meio período”. É o caso do Colégio Estadual Conselheiro Josino, no bairro do Fonseca, que também funciona como abrigo e, em meados de abril, reunia cerca de 170 pessoas. A situação ali é muito mais delicada, como conta o coordenador, Daniel Soares:

“No dia da chuva, o colégio foi aberto pelos moradores. Com a ajuda de uns policiais conseguimos arrombar a porta e começar a acomodar as pessoas. Logo no início foi muito complicado controlar a situação, tinha muitas brigas, sujeira e tudo o mais. Foi preciso um trabalho para educar eles, o que ajudou muito foi a vinda de uma psicóloga, também voluntária, a cada dois dias. As aulas do colégio estão suspensas e sem previsão de volta, os desabrigados não tem nenhuma atividade aqui, se não trabalham ou estudam ficam aí pelo pátio e pelas salas. As salas de aula estão cheias, tivemos que ter cuidado também na hora de juntar as famílias para conviver”.

O medo de deixar tudo para trás

Uma das moradoras do abrigo, Luciana Silva, de 29 anos, relatou outras preocupações: “A minha casa foi interditada pelos bombeiros, já que a Defesa Civil não veio aqui ainda. Há oito anos a nossa casa já tinha sido condenada, mas, como nenhuma outra providência foi tomada, eu e minha família continuamos aqui. Até porque, quando interditam, os móveis das pessoas são levados para um depósito e ficam lá, estragando. Muita gente tem medo disso, que as poucas coisas que sobraram ainda sejam estragadas desse jeito”.

A Escola Municipal Paulo Freire, também no bairro do Fonseca, abriga 180 pessoas, todas do Morro São José 340. Segundo a diretora, Jadinéia Cesário, graças às doações, a escola está bem abastecida com roupas, mantimentos e produtos de higiene. No entanto, o que sobra de material falta em assistência pessoal. Não há psicólogos, médicos, copeiro para fazer as refeições ou porteiro para vigiar a escola. “Nosso maior problema é a falta de remédios e de funcionários da saúde para atender essas pessoas. Quando alguém passa mal, como já aconteceu, eu tenho que pedir para ligarem para o Samu”, afirma Jadinéia, que desde o dia 7 de abril trabalha ali incansavelmente, organizando e alojando quem chega à procura de abrigo.

Sem previsão de volta às aulas, a escola deixa seus cerca de 800 alunos em casa. Mas alguns deles também sofreram com as chuvas e estão abrigados lá mesmo, com suas famílias. Andréa Dias, costureira e mãe de dois alunos, perdeu parentes e tudo o que tinha na casa que desabou. Morava no Morro 340 desde que nasceu e nunca havia passado por uma situação semelhante. Quanto ao futuro, a incerteza de como começar. “Não temos parentes aqui em Niterói, minha mãe morreu soterrada com meus irmãos. Demoraram cinco dias para os corpos serem resgatados. Não sei mais o que fazer da minha vida, não sei para onde ir."

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Galeria:

Um aspecto da destruição no Morro da Boa Vista. A igreja de São Lourenço acolheu os desabrigados, que montaram um varal no quintal. A seguir, uma das vítimas, uma mulher que trabalhava varrendo a comunidade, e a menina ainda abalada com o que aconteceu.

Na Estrada da Cachoeira, o protesto dos desabrigados

Por Paula Paiva e Anabel Moutinho

Francisco mostra os estragos
causados pelo deslizamento
Eram quatro e meia da manhã do dia 6 de abril quando o mundo começou a desabar na comunidade 398 da Estrada da Cachoeira, em Niterói.  Atordoadas com o inesperado, as pessoas desciam com a roupa do corpo, sem saber o que fazer. Até encontrarem um lugar para se abrigar, foram quase 16 horas debaixo de chuva.  A maior parte ficou na Avenida Rui Barbosa, entre dois morros onde os deslizamentos deixaram os moradores ilhados e com lama até os joelhos.

O primeiro desabamento deixou três mortos. Os próprios vizinhos cavaram a terra e retiraram os corpos.

Padre José Maria, da Igreja Imaculado Coração de Maria, foi quem, por iniciativa própria, abrigou parte da comunidade. Também foi ele que procurou a diretora da escola municipal Helena Antipoff, onde estão os demais desalojados. Segundo os moradores, a Prefeitura só compareceu para retirar a lama da avenida. Sentindo-se esquecidos – inclusive porque nem a escola nem a igreja constam da lista de abrigos publicada no site da Prefeitura –, eles organizaram um protesto, mas denunciaram que foram reprimidos pela polícia com gás de pimenta: todos, inclusive idosos e mulheres grávidas. Planejam outra mobilização, mas agora pedem a presença de jornalistas. “Não precisa nem sair na televisão, só de ter gente filmando a polícia já não vai atacar a gente”, diz Cláudio Eduardo dos Reis, um dos moradores da comunidade.

Francisco de Assis Abreu, 44 anos, morava há 18 na comunidade da Estrada da Cachoeira e disse que nunca tinha visto nada igual. Ele, mulher e filho de 12 anos ficaram só com a roupa do corpo, já que sua casa foi completamente destruída. “Você não sabe o que é pagar uma casa durante sete anos e ela cair em segundos”, desabafa. Francisco ficou em estado de choque e por um tempo não conseguiu ir ao locar onde morava. Da primeira vez que retornou, passou mal. Assim como outras pessoas do abrigo, ele diz que agora vive à base de remédios para hipertensão.

Solidariedade e conflito

Na escola Helena Antipoff, onde as aulas estão suspensas – inclusive porque a maioria dos alunos é de lá mesmo e agora a utiliza como abrigo –, misturam-se cenas de solidariedade e conflito. O clima é familiar, porque aquela é uma comunidade pequena, onde todos se conhecem. Os idosos se distraem jogando dominó, as crianças têm “aulas” de brincadeira para passar o tempo. Mas não existe privacidade, todos têm de obedecer a horários fixos para as refeições e para se recolher – o abrigo fecha às dez da noite e só reabre às seis da manhã. São três banheiros para 125 pessoas, o banho é de balde, as crianças escovam os dentes ao ar livre e cospem no ralo. Os animais de estimação dos moradores também foram recolhidos ali e nem todos são muito amigáveis. Ainda assim, Jéssica Cruz, de 19 anos e grávida de oito meses, consegue sorrir e dizer: “está tudo bem”.

Nem tanto. A mãe de Cláudio dos Reis, que sofreu um derrame, não aguentou a algazarra das crianças e, como outros moradores, resolveu retornar para sua casa, mesmo em área de risco. Mas a dificuldade de convívio não é o único motivo: é grande a preocupação com invasões e furtos. voltar é também uma forma de tentar preservar os bens que lhes restaram, evitar invasões e furtos. Afinal, as casas que resistiram foram abandonadas do jeito que estavam: luzes acesas, roupas no varal, portas abertas e eletrodomésticos dentro.


Galeria:

Francisco de Assis mostra os estragos e caminha sobre os escombros onde três pessoas morreram na Estrada da Cachoeira. A seguir, detalhe da acolhida na igreja do Sagrado Coração, e da escola Helena Antipoff, onde foram improvisadas aulas de brincadeira para entreter as crianças.

Fotos de Paula Paiva



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