sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Nos Prazeres, Cuíca resiste. Com serenidade e firmeza

Felipe Pontes Teixeira

A água escorre livremente de uma mangueira durante toda a manhã do domingo de céu azul e se infiltra na grande língua de terra que corta o emaranhado de concreto ao meio. Apesar de asfaltado, o chão permanece impregnado pela cor da lama. Um homem lava sem pressa, com a ajuda do filho, duas Kombis estacionadas logo abaixo de um muro de contenção. Enquanto isso, funcionários da Oi restabelecem uma linha telefônica, dependurados num poste. A menos de 10 metros de distância, faz exatamente 47 dias, um deslizamento de terra matou 31 moradores no Morro dos Prazeres, favela de Santa Teresa.

No coração da favela, numa faixa de terra que vai de 20 metros de largura a 150 de altura, é impossível encontrar vestígios de construções humanas. A única exceção são as ruínas do que parece ter sido uma robusta obra de contenção da encosta. Logo ao lado, as primeiras casas não atingidas pelo deslizamento sequer oferecem pistas de que houve ali um cataclismo. A área foi nitidamente urbanizada no passado.

Cavando com as mãos 

Nos arredores, ninguém conhece Fábio Leonardo Soares das Neves. Qualquer um consegue, no entanto, apontar a residência do popular Cuíca, residente na mesma casa da favela desde nascença. Ele mora a cerca de vinte passos daquele que foi o cenário da maior tragédia provocada pelas chuvas de abril no município do Rio de Janeiro. “Ouvi um barulho imenso e tudo tremeu. Se esperássemos o resgate, ninguém teria sido salvo, então cavei com as próprias mãos até sangrar o sabugo das unhas”, relata ele, que arriscou a própria vida para retirar uma família debaixo de uma laje prestes a desabar.

Aos 33 anos, casado e com três filhos, de 6, 10 e 11 anos, Fábio, ou melhor, Cuíca, divide a casa construída pelo pai com a mulher, a mãe, a irmã, o cunhado e as respectivas crianças. Dentro, apesar da bagunça cotidiana, tudo parece em ordem: TV de LCD na parede (com canais pagos), home theater 5.1, diversos brinquedos espalhados pelo chão, além do computador, recheiam a pequena sala. Para se chegar ao banheiro e ao quarto do térreo é preciso atravessar a cozinha, também bem equipada. Erguida em um desnível acentuado, a arquitetura da construção é claramente intuitiva, sem nenhum tipo de planejamento.

Construção reforçada, mas interditada

“Por achar que ficava mais bonito, meu pai acabou fazendo três pilastras uma ao lado da outra na base da casa”, explica Cuíca, ao relatar a vistoria feita pelo técnico da defensoria pública do Estado, cujo diagnóstico, garante ele, foi o de que “não vai cair nunca”. Mesmo confiante, Cuíca acha necessária uma obra de contenção no topo do morro. Ele credita a instabilidade da encosta à lixeira pública onde os moradores costumavam despejar seus dejetos há mais de 30 anos.

Cuíca recebeu, e assinou, em 8 de abril, um auto de interdição da prefeitura, dois dias após o fatídico deslizamento. Isso, em tese, além de determinar a saída do local, dá direito a que receba o aluguel social, no valor de R$ 400,00. No dia seguinte, 9 de abril, o prefeito Eduardo Paes assinou decreto permitindo a remoção à força de pessoas das áreas consideradas de risco. Cuíca nunca se moveu.

Um antigo ponto de tensão 

Por enquanto, apenas uma moradora do Morro dos Prazeres permitiu a demolição de sua residência. “Só saio daqui com uma indenização de 170 mil reais”, afirma Cuíca.

Aparentemente, a rotina diária da comunidade, que soma mais de mil casas e cerca de 7 mil habitantes, não foi afetada. Facilmente, pode-se ver donas de casa estendendo as roupas em lajes à beira do abismo, como se nada houvesse acontecido. Contudo, durante três dias não foi possível marcar um encontro com a presidente da Sociedade de Amigos Moradores do Morro dos Prazeres, Eliza Rosa, ocupada em reuniões com líderes comunitários de Niterói ou com deputados nas comissões da Assembléia Legislativa. Por baixo da superfície do cotidiano, acordos e acertos políticos são articulados na fronteira de um dos pontos de maior tensão e conflito na sociedade carioca: a ocupação das encostas por favelas.

Os pais de Cuíca, por exemplo, vieram do interior de Minas Gerais para tentar a vida no Rio de Janeiro em 1965. Nos dois anos seguintes, 66/67, morreram cerca de 500 pessoas somente na capital do estado, em decorrência de deslizamentos provocados pelas tempestades tropicais. O governador do que ainda era o Estado da Guanabara, Negrão de Lima, decidiu então criar o Instituto de Geotécnica (atual Fundação GeoRio), com o objetivo único de prevenir a repetição daqueles episódios. Hoje a instituição conta com 40 engenheiros e nove geólogos que emitem mais de 2.300 laudos por ano, alimentando uma extensa e periódica “Cartografia de Risco Quantitativo a Escorregamentos em Setores de Assentamentos Precários na Cidade do Rio de Janeiro”, cujo parecer norteia o Plano Municipal de Redução de Riscos. Nos últimos cinco anos, o Morro dos Prazeres não esteve entre os 32 pontos considerados de intervenção prioritária.

Um homem tranquilo 

Nas paredes da sala de casa, fotos de aniversários de criança dividem espaço com a camisa do Botafogo autografada por todo o scretch campeão do título estadual de 2010. Sem trabalho, as únicas preocupações que Cuíca se permite são o horário do curso de massoterapia no Senac da Rua Riachuelo (Lapa) e a escalação da seleção brasileira para a Copa. No lazer, não dispensa as peladas de fim de semana, mais importantes do que o compromisso marcado com o estudante de jornalismo da Universidade Federal Fluminense, interessado em fazer o seu perfil de “afetado pelas chuvas” e que o esperou por mais de duas horas sob o sol de domingo, enquanto Cuíca sorrateiramente batia uma bola.

“As pessoas acham que moramos no morro por opção, mas se eu tivesse condição de ir para um lugar melhor é claro que eu sairia”, diz, resignado em seu lugar. Ele não parece querer pensar na possibilidade de uma nova tragédia e desconversa quando perguntado sobre a segurança de morar ali. O dilema da remoção também não chega a perturbar seu sono. “Fiz um bico de segurança num evento sobre cidades agora há pouco, por coincidência [a 4ª Conferência Estadual de Cidades], e falei com o próprio Ministro das Cidades [Marcio Fortes de Almeida], que me disse que ninguém nunca irá derrubar minha casa”.

Calmo e descontraído, Cuíca parece saber que acontecimentos como a tragédia do Morro dos Prazeres não alteram, nem a longo prazo, a postura administrativa dos sucessivos governos. “O Rio sempre terá problemas com os morros”, vaticinou Negrão de Lima há mais de quarenta anos.

1 comentários:

dicas da Bel! disse...

Excelente matéria, Felipe. abraços, Larissa

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