domingo, 30 de maio de 2010

Prefeitura do Rio é acusada de descumprir a lei no caso das remoções

Por Rafaella Barros

A prefeitura do Rio de Janeiro vem agindo com base em decretos que contrariam a Lei Orgânica do município para retirar moradores das áreas afetadas pelas chuvas. Quem acusa é o professor e ex-procurador Miguel Baldez, conhecido por sua dedicação de pelo menos 30 anos à questão da terra e dos loteamentos irregulares no estado. Para exemplificar, citou o decreto nº 32.081, baixado por Eduardo Paes em 7 de abril, no dia seguinte à tragédia, e que autoriza a remoção forçada em caso de risco.

“Há um dispositivo proibitivo sobre a remoção de moradores da maneira como está sendo feita”, disse Baldez, referindo-se ao artigo 429 da Lei Orgânica, que determina, nesses casos, além de um laudo técnico, a participação da comunidade afetada e das entidades representativas na análise e definição das soluções. Pela lei, o reassentamento, quando necessário, deve ser em áreas próximas dos locais de moradia ou trabalho.

Baldez reconheceu o apoio jurídico que as comunidades vêm recebendo da Defensoria Pública e citou o empenho da defensora Maria Lucia de Pontes no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa. Porém, como crítico do papel do direito, afirmou que os moradores não devem pensar apenas no recurso ao Judiciário: “Os trabalhadores precisam ultrapassar os limites da representação”.

As declarações foram feitas no debate sobre “Remoção e Resistência: pela moradia popular”, realizado em 6 de maio, na Casa da Ciência, na Praia Vermelha, no Rio. Além de Baldez, participaram do encontro a professora de Serviço Social da Uerj Isabel Cristina Cardoso, o diretor do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Rio de Janeiro Marcos Asevedo e os presidentes das associações de moradores dos morros do Estado, em Niterói, e dos Prazeres, no Rio, Sebastião Souza e Eliza Brandão, respectivamente.

Isabel ressaltou os aspectos sociais envolvidos na questão: “O espaço é produto das relações sociais, que têm uma dinâmica capitalista. Se essa dinâmica é desigual, a divisão do espaço também é”, disse ela, enfatizando a forma arbitrária através da qual estão sendo elaborados os laudos sociais para acompanhar os laudos de interdição. A professora afirmou que “Rio e Niterói estão com ‘decretos de exceção’ que definem o processo de remoção conforme o risco”.

Isabel lembrou que o “discurso do risco” para justificar a remoção é histórico e sempre significou uma forma de favorecer a especulação imobiliária. Porém, agora esse discurso vem disfarçado de preocupações ambientais e humanitárias e aparece como democrático.

“São interesses que se articulam sob o discurso da política habitacional”, disse o arquiteto Marcos Asevedo, também há anos trabalhando em causas sociais sobre a moradia popular. Ele destacou que, não por acaso, ao longo dos últimos anos houve várias tentativas de remoção de moradores em comunidades próximas às zonas Sul e Oeste sob a justificativa de prejuízo ao meio ambiente. Porém – argumentou –, contraditoriamente, cerca de 70% da área de preservação ambiental da cidade é ocupada por condomínios de classe média.

Reiterando a crítica à remoção sem comprovação técnica de risco, Marcos afirmou que o que vem ocorrendo hoje tem muito pouco a ver com a tragédia que aconteceu no Rio de Janeiro no mês passado: “As remoções são uma ofensiva contra as comunidades pobres”.

Sobre a situação da comunidade do Morro dos Prazeres, que o prefeito pretende erradicar, o arquiteto afirmou que o Instituto de Geotécnica do Rio de Janeiro (Fundação Geo-Rio) esteve no local no dia 19 de abril e a representante dos moradores, Eliza Brandão, quis ver o laudo da área, mas o documento não existia. Apareceu depois, com data de 12 de abril. “Esse documento é da Geo-Rio, que corre o risco de perder a sua credibilidade por ter produzido um laudo para justificar uma política já decidida”, condenou ele, reiterando a necessidade de se respeitar a Lei Orgânica: “O laudo tem que ser apresentado às famílias antes de elas serem removidas, com a definição dos problemas e apresentação de alternativas”.

“Não é área de risco, é área de rico”

Para Eliza Brandão, representante da Associação de Amigos do Morro dos Prazeres, a remoção defendida pela prefeitura se traduz em cobiça imobiliária, já que a área fica na Zona Sul e é próxima ao centro da cidade: “Lá não é área de risco, é área de rico. A vista que eu tenho da minha casa é a mais linda do Rio de Janeiro”.

Ela relatou o que viu durante a tragédia das chuvas que atingiram a comunidade e o processo de retirada de moradores que se seguiu. “A notícia da remoção total dos moradores causou um pânico total. As casas foram pichadas, demarcadas para a demolição”.

Eliza disse que a maioria não quer se mudar para o conjunto habitacional no qual o governo pretende reassentar os moradores porque a comunidade se estabeleceu no morro na década de 1920 e não quer abandonar sua história. “Lá no conjunto habitacional não vai ter o meu vizinho, que vai abrir a janela e me perguntar: ‘o café tá pronto’?”.

No Morro do Estado, em Niterói, três moradores morreram devido a um deslizamento de terra. O representante Sebastião Souza, o “Tão”, disse que há 18 anos a associação enviava documentos alertando para a situação da barreira que acabou cedendo e provocou as mortes. Comparou a situação com o que ocorreu no Morro do Bumba, no Cubango: “Governo após governo de Niterói ignorou um laudo que havia sobre o perigo naquela região”. E lamentou que as tragédias sejam tão rapidamente apagadas da memória: “Todas essas mortes daqui a pouco vão ser esquecidas porque a mídia já começou a trabalhar a Copa do Mundo”.

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