terça-feira, 4 de novembro de 2014

Perímetro da Gentrificação: comunidade do Horto luta contra as remoções


Arte de ildo nascimento sobre foto de Sheila Jacob, http://www.brasildefato.com.br/node/12232

Moradores do Horto, bairro com mais de 200 anos de história no Rio de Janeiro, criticam novo perímetro de proteção do Jardim Botânico e defendem regularização fundiária para garantir a permanência de 520 famílias no bairro



Por Gabriel Oliveira
 
Décadas de luta pela garantia do direito à moradia e preservação da memória de uma comunidade com mais de 200 anos. A história dos moradores do Horto Florestal do Jardim Botânico data do começo do século XIX, quando D. João VI ordenou a construção da Fábrica de Pólvora do Rio de Janeiro e do próprio Jardim Botânico, em 1808. Escravos e trabalhadores livres participaram de ambas as construções e obtiveram, à época, a concessão de terrenos para a construção de casas próximas ao local de trabalho. Desta forma, surge uma comunidade que faz parte da construção do Rio de Janeiro e hoje está ameaçada pelo processo de gentrificação que se espalha em diversos pontos de valorização imobiliária da cidade.
 
Esta batalha travada pelos moradores da comunidade – em sua maioria descendentes dos escravos e trabalhadores que lá construíram as primeiras moradias – se intensificou nos anos 80, quando o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal iniciou as tentativas de retirada das famílias que lá viviam. As lideranças comunitárias da época tiveram papel determinante para a permanência dos moradores. Hoje, cerca de 520 famílias (que correspondem a 80% de toda a população do Horto) correm o mesmo risco, especialmente após a nova demarcação da área de proteção ambiental do Jardim Botânico, sancionada em 7 de maio de 2013 pela ministra do Meio Ambiente Izabel Teixeira.


No cenário atual, observa-se uma divisão no próprio poder público no que diz respeito à permanência dos moradores do Horto. A advogada e ativista do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, Juliana Kazan, explica que, diferentemente do que se observa em muitos casos, o Poder Executivo tem atuado de forma a reconhecer os direitos das famílias do Horto. “A SPU (Superintendência de Patrimônio da União) elaborou um projeto de urbanização em parceria com a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que contemplava todos os moradores e previa a recuperação e preservação das áreas verdes. A União tenta impedir as remoções e tem pensado em alternativas habitacionais para as famílias, o que não é o melhor, mas já é alguma coisa”.

Juliana explica que as alegações de dano ambiental são as mais utilizadas para justificar a aprovação da retirada das famílias. Segundo ela, o novo perímetro de proteção do Jardim Botânico contempla quase toda a comunidade do horto. “O último golpe dado foi a demarcação dos limites do Jardim botânico, em que a área do horto aparece 'recortada', passando a integrar o Jardim Botânico. O Tribunal de Contas da União requisitou tal demarcação, que foi feita por um Grupo de Trabalho interministerial e determinou que qualquer processo de regularização fundiária fosse paralisado até a conclusão dos trabalhos. Observo que a regularização fundiária garantiria a permanência dos moradores”, ressalta.

No que diz respeito aos interesses envolvidos na saída da comunidade do Horto Florestal, o Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico (IPJB) é apontado como o principal agente de pressão neste processo, mas Juliana destaca a existência de outros atores no fortalecimento do discurso pró-remoção. “Existe também a pressão da especulação imobiliária, afinal o Jardim Botânico é o quinto bairro mais caro do Brasil". Procurado pela reportagem, o IPJB disse que não se pronunciaria a respeito da acusação feita pelos moradores do horto, alegando que a decisão pela permanência das famílias que vivem na comunidade depende da justiça.

Moradores do Horto enfatizam ligação histórica de suas famílias com o local para impedir as remoções (Foto: Facebook SOS Moradores do Horto) 
 
A Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB) também é outra instituição apontada como agente de pressão para a saída das famílias que vivem no Horto. A instituição colaborou em um caso de reintegração de posse que acarretou a remoção de uma família, conforme relata Juliana. “A AMAJB não era parte no processo. Qual o interesse então? Essa mesma associação atua constantemente pela remoção do Horto, inclusive adotando um discurso que criminaliza os moradores.” A AMAJB alega que não tem interesse em prejudicar os moradores da comunidade, mas sim pela preservação da biodiversidade do Jardim Botânico, tombado como patrimônio público nacional.

Os moradores da comunidade do entorno do Jardim Botânico exemplificam um processo observado em diversos outros pontos do Rio de Janeiro. Entre 2009 e 2013, cerca de 19 mil famílias foram retiradas de suas moradias originais, segundo dados da própria prefeitura. No caso específico do Horto, Juliana lembra a retirada de cinco famílias em função de processos de reintegração de posse. “Uma dessas famílias, a do Sr. Delton, já vivia há três gerações no Horto e foi retirada no ano passado mesmo diante de grande mobilização da comunidade”. A advogada alega que, atualmente, os riscos para que casos semelhantes ocorram são ainda maiores, especialmente em função da nova demarcação do perímetro do Jardim Botânico e uma postura pouco combativa do Poder Executivo. “O Governo Federal pressiona os moradores para fazer um cadastro que servirá para realocá-los em lugares diversos da cidade. A postura da União que garantiria a permanência das famílias seria a regularização fundiária através da concessão de títulos, como a CUEM (Concessão de Uso Especial para fins de Moradia), a CDRU (Concessão de Direito Real de Uso) e implementação do projeto de urbanização. Portanto, existe uma decisão política do executivo federal de não 'comprar essa briga' pela permanência do Horto”, explica.

Cautela política em ano eleitoral

Morador do local há pouco mais de 20 anos, Moacyr Paiva não se considera um filho do Horto, mas sim "marido" da comunidade. Sua esposa é bisneta de moradores, sendo a quarta geração de uma família que vive lá desde 1910. Paiva faz parte da Comissão de Moradores responsável por atos como passeatas e divulgação de ações junto à imprensa, especialmente veículos alternativos e estrangeiros. O morador e ativista ressalta que “a grande imprensa não tem interesse em mostrar a questão sob a ótica dos moradores do Horto”.

Em relação ao fato de as remoções em massa não terem se consolidado, Paiva considera que os setores do governo envolvidos com o processo têm ciência do peso político negativo que a retirada da população do Horto teria em um ano eleitoral. “O custo seria muito alto, em função da grande resistência que existe. Quando esses grupos perceberam o erro na estratégia de induzir a comunidade à submissão, recuaram. As jornadas de junho de 2013 foram um alerta de que a tolerância do povo com arbitrariedades está se esgotando”, destaca.

O morador destaca também que a maior parte dos moradores da região do Jardim Botânico é contrária à remoção e muitos apoiam abertamente a causa, participando, inclusive, dos atos de mobilização. Porém, ele faz ressalva que há alguns grupos favoráveis à remoção. “Uma minoria de muito ricos, que construíram no 'Alto Jardim Botânico' suas mansões (muitas vezes desmatando a floresta nativa). Parte da AMAJB também é contra nós”. Paiva enfatiza que o momento de luta hoje é mais agudo do que nas primeiras tentativas de remoção nos anos 80. “As forças do capital, da especulação imobiliária e do preconceito social investiram pesadamente contra nós”, critica.

Outra questão debatida está relacionada à intenção do Governo Federal de promover a regularização fundiária do Horto. O projeto, que conta com a participação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, não evolui em função de resistências dentro do próprio governo, conforme explica Paiva. “Agora estamos lutando pela volta do projeto, e, embora tenhamos uma promessa da presidenta Dilma neste sentido, até o momento nada aconteceu.”
O morador destaca que a tentativa de erradicação do Horto se desenvolve em um contexto de “limpeza social” que serve a um projeto de cidade e de sociedade altamente excludente. “O objetivo é desenhar bairros conforme os interesses das empreiteiras e políticos que elas sustentam”, lembra. Paiva também alerta para a importância de todos os moradores estarem unidos, pois considera este o melhor caminho para a luta em prol do Horto permanecer forte. “É justamente por isso que os inimigos do povo investem na divisão, na cooptação das lideranças, na desinformação.”
 
União dos moradores é apontada por Moacyr como um aspectos mais importantes para a força da comunidade (Foto: Mídia Ninja)

Valor histórico

 
Emília Souza tem 63 anos e há mais de 60 vive no Horto Florestal. Diferentemente de muitos moradores, a atual presidente da Associação de Moradores e Amigos do Horto (Amahor) não descende das primeiras famílias que formaram a comunidade, mas sua história é semelhante a de seus colegas no aspecto social, por também ser filha de um trabalhador que precisava morar mais próximo do Jardim Botânico. “Meu pai era funcionário do Ministério da Agricultura, lotado no Jardim Botânico, mas morávamos em São João de Meriti. Ele saía de casa de madrugada para iniciar no serviço às 7h. Então, a direção do órgão cedeu uma moradia para ele e viemos para o Horto”.

Ela também enfatiza a luta da comunidade para que o Governo Federal efetive a regularização fundiária dos moradores, reforçando que as conversas com a presidenta Dilma Rousseff foram favoráveis aos interesses da comunidade, embora nenhuma medida tenha sido efetivamente tomada. A Presidente da Amahor lembra que a luta por essa regularização busca garantir os direitos de uma comunidade com mais de dois séculos. “Existem moradores que já completaram 100 anos e nasceram aqui na comunidade, que já remonta os 200 anos de existência com origem operária. Os primeiros trabalhadores foram os 20 escravos trazidos por Dom João para servir à corte, e também mais tarde os operários da America Fabril, que eram imigrantes italianos em grande maioria, além dos operários que foram convidados a morar aqui contratados pelo governo Federal e pela Cedae”, revela.
 
Contudo, se por um lado as chances para que a regularização fundiária se concretize são maiores hoje do que nos anos 80, época das primeiras tentativas de remoção, por outro a pressão para a retirada das famílias também é maior. Na opinião de Emília, a perspectiva de garantia dos direitos da comunidade do Horto intensificou a pressão pela saída dos moradores. “Hoje, a legislação nos beneficia. Temos demonstrado incansavelmente que o argumento ambiental utilizado por nossos algozes é mera conversa fiada. Utilizam a questão ambiental como pano de fundo, mas o verdadeiro objetivo é a limpeza social”. Apesar disso, a presidente da Amahor destaca que os grupos de moradores da região favoráveis à remoção são minoritários.

Um fator que reforça o argumento de preconceito social foi a decisão do Governo do Estado do Rio a respeito da localização do condomínio de luxo Canto e Mello, situado em uma área nobre da Gávea. O empreendimento ocupa uma área que também poderia ser classificada como de proteção ambiental, por ficar a cerca de 500 metros do Horto e parte do terreno pertencer à União. Neste caso, porém, não houve tentativas ou mesmo ameaças de remoção, conforme relata a presidente da Amahor. “O juiz sentenciou o pagamento de medida compensatória alegando que a demolição das mansões causaria mais danos à natureza. Sendo assim, apesar de haver processos de reintegração de posse, os milionários foram beneficiados com a regularização fundiária. Infelizmente, a justiça somente beneficia os mais ricos.”
 
Permanência dos moradores do Canto e Mello reforça ideia de gentrificação contra os moradores do horto (Foto: Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas Rio)
 
A situação vivida pelos moradores do Horto também pode ser observada em outras comunidades do Rio de Janeiro, como Vila Autódromo, Estradinha e Tubiacanga. Em todos estes casos, os interesses privados vão de encontro ao desejo dos moradores em permanecer nos locais onde sempre viveram, e o processo de articulação destes grupos é considerado fundamental por Emília, além do apoio de demais movimentos populares. “Estamos aliados a estes companheiros e sempre nos reunimos em busca de soluções, trocando experiências, apoiando uns aos outros. Quando há ameaça de remoções, sempre existe o apoio mútuo. Não importa se a questão é de origem federal, estadual ou municipal, pois é imprescindível nos unirmos contra a violência das remoções”, conclui.

Confira um trecho da passeata organizada pelos moradores do Horto após a nova demarcação do perímetro do Jardim Botânico. A gravação também traz o relato de alguns moradores da comunidade, entre eles a presidente da Amahor, Emília Souza.




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