quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Questões sobre vida urbana no Rio de Janeiro: casos de bala perdida no morro do Chapadão

Por Raphaela Ayres

A notícia usada como ponto de partida para análise de algumas questões da vida urbana na cidade do Rio de Janeiro foi “Mulher morre atingida por bala perdida no Chapadão, no Rio”, publicada pelo G1 no dia 26 de outubro de 2015. Nela, é relatada a morte de Natália Alves de Freitas, 31 anos, após ter sido atingida por bala perdida no domingo (25). Um inquérito foi aberto para saber a origem da bala. No momento em que a jovem foi baleada havia uma operação da PM em andamento perto do Morro e não se sabe se o disparo que atingiu a jovem partiu de policiais ou traficantes.

A informação que encerra a notícia é “Em três meses, essa foi a terceira vítima de bala perdida que morreu na região do Chapadão”. No dia 14 de julho, Ana Cleide da Silva, de 41 anos, foi atingida nas costas, durante um confronto entre policiais e bandidos. Em 14 de outubro, Maique da Silva de Souza, de 22 anos, morreu atingido por uma bala perdida na comunidade Criança Esperança. Como apontam Vaz, Carvalho e Pombo ao comentarem sobre o eixo do excesso, dentro de uma gramática crítica de imagens e narrativas, a relação expressa na frase destacada pode gerar certa passividade por parte do leitor (VAZ; CARVALHO; POMBO, p. 2-3). Em princípio, a ideia seria a de convocar todos a se posicionarem afetivamente perante a situação dos que sofrem e, no caso da notícia, daqueles que são obrigados a conviverem cotidianamente com a violência. O efeito, contudo, pode ser o contrário porque o público pode achar que é natural esse tipo de acontecimento na área e caracterizá-lo como inevitável. A própria notícia justifica e reforça esse cenário, quando relata que a região tem a maior quantidade de armas em posse de bandidos na cidade do Rio de Janeiro. 

A região do Chapadão tem a maior quantidade de armas nas mãos de bandidos na cidade do Rio (Foto: Wikimapia)
Como casos de bala perdida geralmente são resultantes de um confronto entre policiais e bandidos, isso cria e reforça a ideia de nós x eles. Ainda segundo Vaz, Carvalho e Pombo, “‘nós’ cidadãos e vítimas ao ‘eles’ que nos põem em risco e que, portanto, não respeitam valores básicos da sociedade contemporânea, como a vida, o direito de escolha e a liberdade” (VAZ; CARVALHO; POMBO, 2005, p. 10). Nesse caso, a polícia se encaixaria no plano do ‘nós’, uma vez que suas ações são para proteger “toda a população”.

Todos os casos de vítimas baleadas relatados acima aconteceram em momentos de diferentes operações da policia, ainda que não haja confirmação de uma relação direta entre as balas perdidas e as operações. Jailson Silva aponta que a ação bélica das polícias nas favelas e periferias é naturalizada e vista como inevitável. “O imenso número de mortos – de jovens identificados como criminosos, de moradores sem vínculo com o crime e de policiais – passou a ser considerado parte intrínseca à política de repressão indiscriminada ao tráfico de drogas.” Ele afirma, ainda, que essa estratégia continua a ser mantida, apesar de todas as perdas (SILVA, 2010, p. 8).

Policial observa Chapadão de uma das casas no alto da comunidade (Foto de Paulo Jacob/O Globo)
Vaz, Carvalho e Pombo discutem sobre criminosos e vítimas virtuais, que não são, mas tem potencial para se tornar. Discorrem acerca da tentativa de proteger essas vítimas virtuais de crime, ainda que para isso às vezes tenha que se ignorar “criticas à violência policial, abusos policiais e os ‘danos colaterais’ que afetam quem está, geográfica e imaginariamente, próximo dos criminosos: a população das favelas” (VAZ; CARVALHO; POMBO, p. 12). A situação expressa nas notícias exemplifica esse cenário, uma vez que a bala perdida é um efeito colateral e afeta a população local. Mas pela necessidade de proteção e apreensão dos bandidos, as operações continuam.

O segundo caso, da bala perdida de Maique da Silva de Souza teve maior repercussão por causa dos protestos de reação dos moradores, que destruíram ônibus, criaram barreiras e saquearam posto de gasolina, como resposta. Na noticia é relatado que a família do rapaz prestou depoimento e que afirmou que “ele era trabalhador, sem nenhuma ligação com traficantes”. A notícia completa “A Polícia Civil confirmou que ele não tinha antecedentes criminais”. A necessidade de uma informação como essa tem relação com a representação dos moradores da favela. Silva discute que esta foi construída ao decorrer da história e é resultado da fusão de elementos, como pobreza econômica, falta de formação escolar, predominância de negros e pardos, em uma sociedade racista e preconceituosa. Assim, construiu-se um perfil homogêneo de morador de favela, influenciado pela ideia de espaços de subcidadãos e proximidade territorial com tráfico. Dessa maneira, o discurso de seus familiares tenta romper com esse possível perfil (SILVA, 2010, p.3). Dessa maneira, a fala da família tenta delimitar o papel do parente baleado como vítima, para que assim, fosse permitido sentir pena, já que bandidos e traficantes são apresentados como corporificação do mal (VAZ; CARVALHO; POMBO, 2005, p. 20).

Sobre o caso de Natália, notamos a presença do eixo da espetacularização, uma vez que está disponibilizado no site um vídeo com imagens da moça no chão, após ser atingida pela bala e sendo socorrida, gravadas por um morador. E, posteriormente, imagens do velório, onde são entrevistados a mãe e um amigo de infância. São imagens que promovem uma estetização do sofrimento e são para atrair audiência, uma vez que o velório da mulher foi a questão principal de toda uma matéria.Durante a fala da mãe, podemos notar o conceito de sofrimento evitável, quando ela relata o medo da filha de tiros. “Se ela tivesse escutado alguma coisa não saia de jeito nenhum. Quando ela desceu não estava havendo (tiroteio).” Assim se constrói uma relação entre a decisão da moça de sair de casa e ter sido atingida. Os comentários sobre o desejo de sair daquela região também expõe o sentimento de risco com os quais conviviam, o risco como norma. Segundo Vaz, Carvalho e Pombo, “noção de risco implica uma batalha constante pela segurança e continuidade do presente de alguns em oposição indefinida a outros que os ameaçam” (VAZ; CARVALHO; POMBO; 2005, p. 8). O que pode ser exemplificado pela própria fala da mãe ao comentar da violência constante “Acho que não tem lugar pior do que ali não. No Rio de Janeiro, não tem não. É toda hora.”


Enterro de Natália, vítima de bala perdida, em Ricardo de Albuquerque (Foto de Marcelo Elizardo/G1)
Ao fim da noticia sobre a morte de Maique, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, comentou sobre a situação de violência no complexo do Chapadão e afirmou que “o que tem que fazer é ocupar”. Como diz Vaz, “É exatamente a partir dessa demanda de intervenção que reaparece o Estado autoritário. O Estado (...) aumenta sua autoridade de policial, de intervir em nome das vítimas virtuais, como contentor daqueles que representam um risco à liberdade delas.” (VAZ; CARVALHO; POMBO, p.10). Vera Batista discute sobre o consenso que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) se tornaram através do bombardeio midiático (MALAGUTI, 2012, p. 1). Ele também critica quando as UPPs são chamadas de policiamento comunitário ou de proximidade, uma vez que a ocupação de algumas favelas ocorreu em forma de guerra, com o apoio das Forças Armadas, “instituindo uma gestão policial e policialesca da vida cotidiana dos pobres que lá habitam” (BATISTA, 2012, p. 6).

Edilson Silva ao entrevistar jornalistas questionou porque o espaço conferido a eventos violentos na cidade do Rio de Janeiro aumentou. Segundo os entrevistados, o fenômeno da violência assumiu maiores proporções, tornando-se um assunto com maior visibilidade social e, consequentemente, midiática uma vez que a guia do jornalista é o interesse público. Entretanto, notamos apenas o aumento do relato de casos e não uma discussão mais profunda sobre origens e como solucionar essa questão.


Referências bibliográficas:

BATISTA, Vera Malaguti. “O alemão é muito mais complexo”. In Paz armada. Criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

CHAUÍ, Marilena. "Democracia e autoritarismo". In Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010.


ELIZARDO, Marcelo. 'Ela tinha medo dos tiroteios', diz mãe de morta por tiro no Chapadão. G1, Rio de Janeiro, 27 de outubro de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/ela-tinha-medo-dos-tiroteios-diz-mae-de-morta-por-tiro-no-chapadao.html Acessado em 02/11/15

SILVA, Edilson Marcio Almeida da. "A construção da violência urbana como problema público: o jornal como ator político" In "Notícias da violência urbana": um estudo antropológico. Niterói: EdUFF, 2010.

SILVA, Jaílson de Souza e. As Unidades Policiais Pacificadoras e os novos desafios para as favelas cariocas. Disponível em: http://observatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/06/Aspectos-humanos-das-favelas-cariocas.pdf Acessado em 20/10/15

VAZ, Paulo; SÁ-CARVALHO, Carolina; POMBO, Mariana. Risco e sofrimento evitável: a imagem da polícia no noticiário de crime. Revista Compós, Dezembro de 2005. Disponível em: http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/46/46 Acessado em 02/11/15 Acessado em 20/10/15

Corpo de baleada no Chapadão, Rio, será enterrado nesta terça. G1, Rio de Janeiro, 27 de outubro de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/corpo-de-baleada-no-chapadao-rio-sera-enterrado-nesta-terca.html Acessado em 02/11/15


Morte de jovem teria motivado depredações e saques no Chapadão. G1, Rio de Janeiro, 14 de outubro de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/morte-de-jovem-motivou-depredacoes-e-saques-no-chapadao-diz-policia.html Acessado em 02/11/15


Mulher morre após ser atingida por tiro em Costa Barros, Rio. G1, Rio de Janeiro, 14 de julho de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/07/mulher-morre-apos-ser-atingida-por-tiro-no-chapadao-rio.html Acessado em 02/11/15

Mulher morre atingida por bala perdida no Chapadão, no Rio. G1, Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/mulher-morre-atingida-por-bala-perdida-no-chapadao-no-rio.html Acessado em 02/11/15


'Nunca imaginei isso', diz irmão de vítima de bala perdida no Rio. G1, Rio de Janeiro, 14 de julho de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/07/nunca-imaginei-isso-diz-irmao-de-vitima-de-bala-perdida-no-rio.html Acessado em 02/11/15

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