terça-feira, 19 de maio de 2015

Remoção: Um Ciclo de Tentativas de Exclusão Social


Por Gabriel Oliveira

Um fenômeno que não é novo nas áreas nobres do país e com grande interesse imobiliário, mas cujo debate não perde atualidade. As remoções de populações negras e pobres no Brasil, que tiveram seu primeiro momento de maior impacto no começo do século XX – durante o governo do prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro entre 1902 e 1906 – voltaram a ser uma realidade em diferentes espaços populares desde que a cidade foi escolhida como cidade-sede de jogos da Copa do Mundo e, especialmente, dos Jogos Olímpicos Rio 2016. 

Para debater o assunto junto a alunos do curso de Jornalismo da UFF, o diretor de teatro, cinema e TV e documentarista Luiz Antonio Pilar foi convidado a participar de uma aula, no último dia 13 de maio, da disciplina de Jornalismo e Vida Urbana no campus do Gragoatá, onde falou sobre a produção do filme Remoção, que traz uma série de depoimentos de moradores retirados das favelas e conjuntos habitacionais da Zona Sul do Rio de Janeiro nas décadas de 60 e 70. O trabalho é reconhecido como uma importante contribuição para o estudo e produção de memória deste período.

Após falar sobre suas diversas experiências profissionais como ator e, especialmente diretor de TV, função que ocupou por 15 anos na TV Globo, Pilar, natural de Padre Miguel, Zona Oeste do Rio, deixou a emissora e criou a produtora independente Lapilar, onde produziu Remoção, ao lado de Anderson Quack. O documentarista revelou que a intenção inicial era realizar um filme com histórias de vida dos moradores das favelas do Rio de Janeiro, com curiosidades e fatos inusitados do cotidiano dos morros cariocas, mas percebeu depois a importância de tratar sobre um tema que afeta até hoje a vida das pessoas que foram retiradas de suas casas e levadas a pontos muito mais afastados da cidade.

“Essas histórias inusitadas foram o que a gente pensou inicialmente para o filme, até que fomos a campo fazer nossa pesquisa. Foi aí que nós começamos a perceber que a nossa verdadeira história era um pouco mais profunda e também mais problemática. Notamos que esses moradores removidos nos anos 60 e 70 tinham uma mágoa e um sentimento de perda muito profundo, e nunca tiveram e oportunidade de se expressar. Nós então decidimos que o filme deveria ganhar um outro contorno”, detalhou.

Pilar destacou que o documentário deu ênfase às histórias dos moradores removidos
A partir daí, todo o processo de produção ganhou corpo. O documentário passou a abordar como o processo de desapropriação das casas em favelas da Zona Sul do Rio se desenhou e os impactos da gentrificação sobre os moradores que foram forçados a se afastar de algumas das áreas mais nobres do município para outras carentes de serviços básicos. Mais distantes dos centro econômico, essa parcela da população também passou a ter mais dificuldades de conseguir empregos.

Um outro aspecto ressaltado por Luiz Antônio Pilar foi que, durante a pesquisa para o documentário, ele notou que o drama vivido pelos moradores removidos de suas casas foi pouquíssimas vezes relatado pelos grandes jornais. Além disso, o diretor falou sobre a ideia de colocar o relato das pessoas retiradas em contraste com o daquelas que tiveram papel atuante nas remoções. 

“Antes do lançamento do filme, fizemos uma pesquisa extensa e encontramos pouquíssima coisa na imprensa, pouquíssimos depoimentos de quem foi removido. O que nós tivemos foi muito acesso a estudos acadêmicos. Eu também vi que era muito escasso o material com depoimentos das pessoas que instituíram esse processo. A partir daí, tivemos a ideia de contrapor essas percepções e montar o filme apresentando três pontos de vista: o de quem foi removido, o de quem promoveu a remoção e o de quem estudava esse assunto”

Um outro aspecto explicado por Pilar foi o fato de, para muitas pessoas que viviam nessas comunidades pobres, o afastamento das zonas nobres e economicamente fortes do Rio ter sido definitivo. O documentarista relata a história de um morador que nunca mais retornou ao local onde ficava o Parque Proletariado da Gávea, próximo ao campus principal da PUC-RJ. “Esse cara sonha há mais de 40 anos voltar para o Parque Proletariado, para ver um rio que nem existe mais. Ele sequer sabe que hoje existe um Planetário onde ele costumava morar. Quando perguntei porque ele não voltava para ver esse lugar novamente, ele me respondeu: ‘eu nem sei se eu consigo chegar lá, porque eu nunca mais voltei ao centro do Rio de Janeiro’. 

Pilar acrescenta que este caso se repetiu com inúmeros outros moradores, e lembra que a enorme distância entre as novas moradias dessas pessoas e as zonas nobres da cidade era ainda mais agravada nos anos 60 e 70, pela completa ausência de transporte público nas áreas mais afastadas Rio. “O processo de remoção causou esse mesmo mal a inúmeros outros moradores. Se nós pegarmos o exemplo de Vila Kennedy, são 46 km de distância para o centro do Rio, e isso numa época em que não havia qualquer infraestrutura de transporte. Então, isso explica como essas pessoas tenham sido definitivamente excluídas de uma zona da cidade, sem serviços básicos e pouquíssimas chances de trabalho, e isso foi ganhando uma importância cada vez maior no filme”, explicou.

Uma história que se repete

Luiz Antonio Pilar também frisou que o documentário tinha o objetivo maior de resgate de memória de uma época na qual as remoções ocorreram intensamente. Porém, a atualidade do tema, em função da retirada de moradores que vivem na rota das obras dos megaeventos esportivos, em especial os Jogos Olímpicos de 2016, fez com que a produção ganhasse uma repercussão e importância ainda maior. Ele ainda ressaltou que a história do Rio de Janeiro é marcada por ciclos de remoção desde o governo Pereira Passos. 

“O filme coincidiu de ser lançado na mesma época em que o Rio volta a passar pelos mesmos processos que nós retratamos, mas dessa vez em função da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. O mesmo já tinha acontecido de certa maneira no início do século, quando Pereira Passos reforma todo o centro do Rio de Janeiro e põe em toda a área que hoje conhecemos como subúrbio a população pobre e negra do centro da cidade, acabando inclusive com diversas manifestações culturais e religiosas, especialmente as da chamada ‘pequena África’”

Outro ponto ressaltado pelo documentarista foram os ciclos de remoção que ocorrem na cidade do Rio
O diretor destacou que o documentário promoveu uma reflexão entre os entrevistados. Ele utilizou o exemplo de uma moradora que havia recebido dinheiro da Prefeitura do Rio para vender sua casa, mas que, após assistir ao documentário, decidiu devolver o dinheiro e permanecer na comunidade da Vila Autódromo, em Jacarepaguá, uma das áreas mais afetadas pelas obras olímpicas. “A partir do relato desta senhora, percebi que o filme estava começando a cumprir o seu papel social, pois uma das estratégias mais usadas nas remoções é gerar conflitos internos entre aqueles que aceitam vender suas moradias e os que desejam ficar. É claro que o indivíduo tem todo o direito de vender a sua casa, mas é preciso tomar muito cuidado para não se tornar massa de manobra de grupos que desejam gerar uma desestruturação de dentro das comunidades”, alerta.

As reflexões promovidas ao longo das quase duas horas de palestra e pelo documentário não encerram as discussões sobre a retirada de populações pobres em prol de um projeto de cidade elitizada. Porém, como o próprio Pilar destacou, o filme trouxe para o universo audiovisual uma realidade até então predominante apenas no ambiente acadêmico, complementado os estudos já realizados. O diretor encerrou seu depoimento destacando o orgulho que sentiu com o efeito que Remoção causou nele e nos moradores que se viram como protagonistas do documentário sobre suas histórias de vida. “Eu acabei me sentindo muito orgulhoso dessa homenagem a mim mesmo e, principalmente, às pessoas que perderam o seu bem mais precioso, que é o direito à propriedade, à sua memória e ao seu sentimento. Foi muito emocionante ver na minha casa pessoas que se viram no documentário e foram me agradecer. É uma obrigação nossa guardar e tratar essas histórias com muito carinho e dar voz a essas pessoas”, concluiu.

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