quinta-feira, 4 de dezembro de 2014



Promessas de apartamentos do Morar Carioca provocaram um racha entre moradores de comunidade tijucana com 57 anos de história

Por Gabriel Oliveira

A comunidade de Indiana, localizada às margens do Rio Maracanã e vizinha da comunidade do Borel, na Tijuca, vive uma situação que difere em muito dos demais locais ameaçados pelo processo de remoção na cidade do Rio de Janeiro. Mesmo não estando na rota das competições esportivas dos Jogos Olímpicos 2016, a região passou a ser alvo do processo de reconstrução da paisagem carioca, com promessas de moradias em condições mais dignas no bairro de Triagem – onde foram construídos apartamentos do Morar Carioca – e melhorias para os moradores que optassem por permanecer em Indiana, que cresceu negligenciada pelo poder público desde sua fundação, em 1957, e hoje ocupa uma área de mais de 13.700 m². 

Na prática, porém, apenas a primeira garantia da Secretaria de Habitação foi cumprida, gerando uma divisão na comunidade, enquanto os moradores que permanecem no local continuam enfrentando os mesmos problemas estruturais quanto ao acesso a direitos básicos. O maior agravante, contudo, é o fato de a ameaça de remoção ser real e a grande redução no número de moradores em Indiana tornar a luta dos que lá permaneceram ainda mais difícil. O relato de Maria do Socorro da Silva, ativista que vive na comunidade há 33 anos, revela algumas das maiores dificuldades em decorrência dessa divisão.

Maria do Socorro é uma das mais antigas ativistas de Indiana (Foto: Blog Comunidade Indiana)
“Logo que as representações da prefeitura, por meio da Secretaria de Habitação, vieram para cá em janeiro de 2012, foram prometidos cerca de 200 apartamentos em Triagem por meio do programa Morar Carioca. Essa promessa atraiu o interesse de muita gente, mas não de todos os moradores. O então secretário Jorge Bittar garantiu que iriam sair apenas os moradores que desejassem, pois também seriam feitas melhorias na comunidade. O problema é que essa promessa dos apartamentos para os que aceitassem sair de Indiana desestruturou a comunidade. Em poucas semanas, já não se falava mais em melhorias aqui, e o pior é que alguns agentes da prefeitura que passaram a vir à comunidade falavam que os moradores que não aceitassem os apartamentos teriam as casas demolidas. Isso gerou um clima de terror entre todos nós”, relata Maria. 

A Secretaria de Habitação, por sua vez, disse ao Depois da Chuva que nunca instruiu seus funcionários a agir dessa forma e que condena o comportamento dos que eventualmente tenham adotado tal postura, mas evitou se aprofundar sobre o assunto e nem se pronunciou se irá investigar as denúncias feitas pelos moradores. 

O primeiro cadastramento das famílias foi realizado ainda em 2010, e atualizado em 2012. Durante o processo, todas as habitações em área de risco seriam demolidas, e estes moradores não teriam outra escolha a não ser aceitar um apartamento do Morar Carioca, programa vinculado ao Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal. A remoção de comunidades é proibida, exceto em casos onde há classificação de risco para as famílias, conforme o artigo 429 da Lei Orgânica do município do Rio de Janeiro. As informações foram apresentadas em artigo escrito pela defensora pública e integrante do Núcleo de Terras e Habitação (Nuth), Maria Lúcia de Pontes, para o livro Os Conflitos Fundiários no Brasil. Um dos problemas apontados no artigo, porém, atenta para o fato de não haver um levantamento técnico aprofundado, que comprove a situação de risco de toda a comunidade, argumento constantemente apresentado para a prática das remoções. 

Entre março e outubro de 2012, 110 das cerca de 630 famílias que viviam em Indiana foram removidas, a maioria delas para os apartamentos do Morar Carioca em Triagem. Atualmente, outras 120 aguardam por apartamentos do mesmo programa, enquanto cerca 400 lutam para permanecer na comunidade. Houve, em decorrência disso, um acirramento de tensões entre os dois grupos, pois os moradores a espera dos apartamentos acusam os que desejam ficar de atrapalharem o processo de negociação com a Prefeitura do Rio, enquanto o segundo grupo alega que apenas defende o direito das famílias que escolheram ficar em Indiana.

Muitas das famílias se identificam fortemente com a comunidade e desejam permanecer (Foto: Uanderson Fernandes / Agência O Dia)

Em entrevista ao Depois da Chuva, Maria Lúcia destacou que, do ponto de vista legal, não há nada que ateste tecnicamente a necessidade de remoção da comunidade, motivo pelo qual muitas famílias decidiram permanecer lá. “Existe um projeto de alargamento da Vila Maracanã, que causaria impactos no entorno do Rio Maracanã, e que, por isso, põe em risco o projeto de preservação de parte daquela área . Tomamos conhecimento disso por buscas nossas. Diferente da Vila Autódromo, que em tese teria o interesse das Olimpíadas contra o da comunidade – ainda que essa explicação não seja a real – no caso da Indiana os interesses não são públicos.”

Desde dezembro de 2012, após uma audiência especial para julgar a Ação Civil Pública a respeito das primeiras demolições de casas em Indiana, foi decidido que as moradias deveriam permanecer preservadas, e os moradores que quisessem continuar em Indiana teriam o seu direito garantido. O Ministério Público estadual juntou ao processo o laudo elaborado pela Fundação Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro (Geo-Rio), que classificou a comunidade como de baixo risco. Abaixo, trecho do parecer de 10/12/2012, expedido pelo MP.
[...] O representante do Ministério Público, por seu turno, opinou pelo deferimento da antecipação de tutela por entender presentes os requisitos legais para tanto. Efetivamente, da análise dos autos resulta clara a pertinência do deferimento da medida, eis que demonstrada a violação do direito dos moradores ante a aparente ilegalidade da intervenção municipal no local. [...] não comprovou a existência de qualquer risco aos moradores.
Nos termos do disposto na Lei 10.257/2001, resta expresso que na execução da política urbana, deve ser observada a gestão democrática participativa bem como no acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano [...]”.

Constatou-se, ademais, que a municipalidade, visando a efetivar o seu intento, tem celebrado acordos individuais com moradores, buscando, assim, nitidamente, evitar a necessidade de participação da coletividade no futuro da comunidade. A situação apresentada é grave, obrigando aos moradores que ainda se mantém no local, aliada a incerteza do futuro que os aguarda, a conviver com imóveis demolidos e outros abandonados, bem como com entulhos ao redor. Portanto, flagrante a violação do MRJ dos princípios da informação e da consensualidade, que norteiam a administração pública, na execução de sua intervenção no local.

Ante ao exposto, presente os requisitos legais, defiro a liminar requerida para determinar a suspensão da intervenção pública em apreço, até que a administração demonstre, sem sombra de dúvida, o regular atendimento ao ordenamento jurídico vigente, devendo, ainda, realizar audiência pública na comunidade na eventualidade de existência efetiva de projeto urbano especifico para melhoria da mesma. Deverá, de igual modo, providenciar a retirada dos entulhos existentes no local bem como promover os atos necessários para que os imóveis já desocupados não apresentem riscos aos moradores, seja mediante a colação de tapumes e limpeza, seja com o efetivo policiamento no local [...]. (Processo nº: 0402292- 65.2012.8.19.0001 - Data Decisão: 10/12/2012 - TJ/RJ).

A respeito da decisão, Maria Lúcia disse ao Depois da Chuva que as principais razões para as tentativas da remoção estão ligadas a um desejo de valorização imobiliária da região, inviabilizada pela presença das populações pobres que vivem naquele entorno. “Conhecendo o caso, eu analiso que os interesses que estão em jogo são: de um lado o interesse de um grupo de moradores pobres que ocupam uma área hoje valorizada na Tijuca há mais de 50 anos e que esperam receber as melhorias urbanísticas previstas em lei. Do outro lado, vários empreendimentos e um desenho de melhorias que eleva o padrão da população (mais rica) que reside no local.” 

Um aspecto preponderante para a não remoção completa de Indiana foi a conquista de uma liminar pelo Nuth, que apresentou à Justiça o desejo de grande parte dos moradores pela permanência no local. Porém, a obtenção desse parecer favorável à comunidade deve-se, na opinião de Maria do Socorro, à luta das famílias contrárias à mudança para os apartamentos no bairro de Triagem. “Eu costumo dizer que, sem a nossa mobilização, a liminar não teria sido suficiente para que continuássemos aqui. Enfrentamos nos últimos anos pressão de todos os lados, tanto do poder público, quanto, infelizmente, de alguns ex-moradores daqui e outros que permanecem. Não queremos obrigar que ninguém permaneça na comunidade contra a própria vontade, mas temos o direito de continuar no lugar que ajudamos a construir e nos identificamos”, conta a moradora, em tom de desabafo.

Faixa colocada em Indiana destaca o direito de permanência de comunidades em áreas de baixo risco (Foto: Facebook Comunidade Indiana)
Maria do Socorro ainda atua fortemente contra a demolição das casas de Indiana, mas deixou de fazer parte da Comissão de Moradores, instituição criada na comunidade em oposição à Associação de Moradores. Ela alega que a Associação deixou de atuar pelos interesses dos moradores e passou a intermediar com as famílias a mudança para os apartamentos do Morar Carioca. “Os integrantes da Comissão de Moradores passaram a ser acusados de se posicionar contra a saída de todas as famílias, quando na verdade atuamos apenas contra a remoção completa de Indiana. A Associação de Moradores deixou de defender a comunidade e se aliou à Prefeitura para tentar convencer a todos de sair daqui. Eu deixei a Comissão recentemente porque temia pela minha segurança e estava extremamente desgastada, mas continuo participando de todas as mobilizações pela sobrevivência de Indiana”. 

A Associação de Moradores, por sua vez, foi procurada pela reportagem, mas não atendeu a nenhum dos telefonemas feitos entre os dias 17 e 28 de novembro. As ligações foram realizadas duas vezes por dia, sempre entre 10h e 16h. Também não foram encontrados outros canais de contato atualizados, como páginas oficiais no Facebook, Twitter ou endereços de e-mail válidos. 

Maria do Socorro ainda lembra que os habitantes da chamada Indiana 2 – parte da comunidade que vive praticamente “dentro do Rio Maracanã” – não foram os beneficiados pelo Morar Carioca, e sim uma parcela de famílias que, em muitos casos, viviam em algumas das melhores residências da comunidade. “Pessoas que tinham casas de dois, três andares foram as primeiras a sair daqui, enquanto muitas das que vivem em condições realmente muito precárias continuam vivendo aqui. Isso acontece porque a área de Indiana 2 é menos valorizada do que a Indiana 1, onde há moradias melhores”, conta. 

Na avaliação de Maria Lúcia de Pontes, a união dos moradores será determinantes para a sobrevivência de Indiana. Ela considera que as garantias legais obtidas por meio de liminares não serão suficientes se a resistência da comunidade for desarticulada. “A mobilização foi o mecanismo que possibilitou a obtenção da liminar. Sem ela a comunidade estaria fadada ao desaparecimento, já que a Prefeitura iniciou a pressão por dentro e com apoio de parte dos moradores. Sem dúvida, a continuidade da mobilização funciona como fundamental mecanismo de pressão para que a Prefeitura respeite a liminar, pois o discurso entoado pelo município era de que a população queria sair da comunidade. Foi a mobilização de quem deseja a urbanização e permanência do local que derrubou este falso argumento.” 

A defensora pública também criticou a atuação da Associação de Moradores, apontando a instituição como uma das principais responsáveis pela fragilização de Indiana na luta contra as remoções, mas destaca a atuação da Comissão de Moradores na rearticulação da comunidade. “Em geral essa falta de representatividade da Associação de Moradores aos desejos da população enfraquece toda luta que esta população necessita desenvolver, mas a experiência com a Indiana tem mostrado que a formação da Comissão superou essa fragilidade".

Melhorias na comunidade estão entre as principais causas de protestos dos moradores de Indiana (Foto: Facebook Comunidade Indiana)
A respeito do futuro, Maria do Socorro permanece com a convicção de que a luta nas ruas será a principal forma de manter Indiana viva no combate às remoções, pois só com as denúncias e resistência será possível enfrentar as investidas do poder público pela saída das famílias que escolheram ficar na comunidade que ajudaram a construir. “Enquanto nós tivermos forças e permanecermos unidos, seguiremos protestando contra as tentativas de nos tirarem daqui. Nós escolhemos ficar não porque as condições de vida aqui são ótimas, mas porque desejamos que sejam feitas as melhorias prometidas dois anos atrás. Temos uma história, uma relação com a nossa comunidade, e com o apoio dos movimentos populares, continuaremos resistindo, aqui e nas ruas, junto às demais comunidades ameaçadas de remoção no Rio de Janeiro”, frisa. Dentre esses apoiadores, estão, além do Nuth, o Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro (Iterj), o movimento Favela Não se Cala e o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas. 

Já a Secretaria de Habitação da Prefeitura afirma que tem como maior interesse a defesa da segurança dos moradores de Indiana, oferecendo-lhes moradias dignas. Informa ainda que as casas comprovadamente fora de risco não serão removidas, conforme compromisso assumido pelo prefeito Eduardo Paes em visita à comunidade em agosto de 2013.

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