sexta-feira, 22 de março de 2013


Por Marcio de Souza Castilho 

As chuvas que atingiram o Rio de Janeiro, especialmente a Região Serrana, no último domingo, dia 17 de março, mostraram mais uma vez a incapacidade do poder público de mudar o roteiro de uma tragédia anunciada. Em Petrópolis, onde vivem 138 mil moradores em 132 áreas de risco, o temporal já provocou a morte de 27 pessoas, deixando cerca de 1,5 mil moradores desalojados e desabrigados. Até a noite de terça, dia 19, equipes do Corpo de Bombeiros ainda buscavam desaparecidos. 

Tão previsível quanto às tragédias de verão, a imprensa deu ampla cobertura ao tema. Como de hábito, não faltaram matérias trazendo o relato das vítimas, a dor dos familiares, os trabalhos das equipes de resgate, a opinião de especialistas, a declaração de autoridades e a memória de outros desastres naturais no Rio que deixaram um rastro de sofrimento, perplexidade e indignação. Não é preciso voltar tanto no tempo para evidenciar que o problema é recorrente. Na mesma região, em janeiro de 2011, as chuvas nos municípios da serra fluminense causaram mais de 900 mortes e deixaram outras centenas de desaparecidos. A tragédia foi considerada a maior catástrofe climática da história do país. 
Apesar da potência do recente temporal em Petrópolis – no bairro Quitandinha, o índice pluviométrico chegou a 428 milímetros no momento de chuva mais intensa, quase o dobro do esperado para o mês inteiro –, o grande número de vítimas deve ser explicado não na perspectiva da força sobrenatural da natureza, mas em termos da ação do homem. Está relacionado, sobretudo, à falta de planejamento urbano e à ocupação irregular de encostas e margens de rios, que, por sua vez, estão assoreados por lixo e esgoto. Os estragos decorrentes das chuvas no distrito de Xerém, em Duque de Caxias, ilustram essa lógica: no intervalo de pouco mais de dois meses, a região se vê novamente mergulhada num cenário caótico. 

Como se não bastasse essa perversa combinação de erros, irresponsabilidade e omissão, o problema se agrava com a falta de aplicação de recursos em contenção de encostas e na retirada de moradores em áreas de risco para conjuntos habitacionais. As promessas acabam virando moeda de troca em disputas eleitorais. Vítimas das chuvas no Morro do Bumba aguardam há três anos a entrega dos imóveis. Enquanto isso, vivem em situação precária, com risco de contrair doenças, nas instalações do 3º Batalhão de Infantaria de Niterói. O deslizamento no morro do Bumba, em abril de 2010, matou 47 pessoas. 

Autoridades tangenciam a responsabilidade da administração pública normalmente culpabilizando os moradores por sua tragédia particular, como se lhes restassem muitas alternativas. Uma resposta conveniente, fragmentada, descolada de uma necessária contextualização. Para além da superfície, cabe, por sinal, aos meios de comunicação questionar as respostas prontas, fazer a devida problematização e (por que não?) avaliar seu próprio papel na cobertura de grandes tragédias.

A serviço da coletividade

Uma rápida análise nos jornais e nos telejornais evidencia o fascínio que as perdas inesperadas, que tomam de assalto uma trajetória e interrompem ações e projetos de vida, exerce na imprensa. As mortes capazes de gerar uma grande repercussão midiática são aquelas que representam inegavelmente uma ruptura. A cobertura ganha dimensão em termos quantitativos em episódios como as chuvas recentes em Petrópolis. Ainda que a pauta das chuvas esteja presente na imprensa não apenas de maneira reativa, as denúncias não parecem capazes de mobilizar a sociedade para o enfrentamento do problema. Diante desse quadro, o jornalismo deve reforçar o seu papel de oferecer aos cidadãos informação de qualidade de modo a subsidiá-los criticamente no debate sobre o tema. 

Se os encaminhamentos para a resolução dos problemas devem ser tomados coletivamente, como o Estado pode se apresentar – não de forma eleitoreira ou criminalizante – para construir uma relação de cidadania com os moradores? O Estado pode e deve retirar moradores em situações de risco, mas não em detrimento da participação efetiva dos cidadãos sobre as políticas públicas na área de habitação e infraestrutura que terão impacto, em curto, médio e longo prazo, sobre suas vidas. 

“A cidadania é um espaço a conquistar”, escreveu certa vez o jornalista argentino Washington Uranga, pesquisador e professor titular da Universidade de Buenos Aires e Universidade Nacional de La Plata. É nesse cenário que o jornalismo pode dar uma grande contribuição desde que esteja comprometido na luta pela cidadania e construção de direitos em todos os campos da vida social. 

Vale lembrar que, num período de forte valorização da grande reportagem na imprensa brasileira, ainda distante do estágio atual do desenvolvimento tecnológico dos sistemas de comunicação e informação, o Jornal da Tarde publicava no longínquo ano de 1971 o trabalho “Receita para São Paulo”. A série de sete cadernos especiais traçava um diagnóstico sobre o crescimento desordenado da maior capital brasileira e apontava soluções para problemas de infraestrutura urbana na capital paulista. Era o jornalismo, de fato, a serviço da coletividade e não apartado da construção da cidadania. Algumas das propostas apresentadas em “Receita para São Paulo” tornaram-se políticas públicas nas áreas de habitação, saúde, educação, transporte e uso do solo, dentre outras. A série de reportagens conquistou o Prêmio Esso de Jornalismo naquele ano. Virou história, assim como o próprio jornal, que encerrou suas atividades em 2012. 

O jornalismo responsável, atento aos interesses e revindicações da sociedade, não deve reproduzir a lógica viciosa de ignorar a tragédia de ontem para que o drama do presente ocupe seu lugar de destaque nas páginas centrais ou tempo nos telejornais. A efemeridade como marca do discurso jornalístico, do mesmo modo, tende a apagar o fato mais recente pelo acontecimento trágico de amanhã. Infelizmente eles continuarão acontecendo no Brasil e no mundo. 

Trocando em miúdos, não podemos deixar que as 27 vítimas em Petrópolis, o impacto e as circunstâncias da tragédia na Região Serrana permaneçam recebendo a atenção da mídia até que o interesse do público se dirija para algum outro incidente tão novo ou emocionante (Park, 1980). Alguém ainda lembra o nome da banda que fazia um show pirotécnico na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), onde morreram 241 jovens, ou em que passo está a investigação policial que apura o envolvimento dos proprietários da casa noturna no incêndio? 

As vítimas de grandes tragédias fazem parte daquilo que Mouillaud (2002) classificou de “mortos banais ou de serviço”: “(...) aparecem dia após dia, no mesmo local, pelo menos nos jornais regionais, e como uma informação local, que interessa, e só interessa, a uma comunidade: faz parte do balanço de suas perdas e ganhos (como os casamentos e nascimentos). É banal e repetitiva como a própria morte” (idem: 349). 

Informar o público sobre o impacto de um deslizamento de terra ou inundação significa quase nada, se somos, como jornalistas, incapazes de organizar e articular cada história com o contexto social, político e econômico mais amplo. Significa muito pouco se operarmos o discurso jornalístico em esquemas que simplificam e fragmentam a compreensão do real, como episódios isolados no tempo e no espaço. A tarefa do jornalismo do século XXI – em meio a tantas mudanças tecnológicas, que reconfiguram, por consequência, os modos de atuação desse profissional – é promover o engajamento de todos os cidadãos na vida política e social, habilitando-os como vozes autorizadas a intervir na construção de um outro modelo de sociedade mais participativo e plural.

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