Por Camilla Shaw e Patrick Rosa
A
apresentação dos casos policiais pelo jornal Meia Hora aponta para uma narrativa dualista, que relata uma
espécie de luta entre o “bem e o mal”, mostrando duas forças antagônicas que se
enfrentam diariamente na cidade: a polícia e a “bandidagem”. No meio dessa
trama, encontra-se o “cidadão de bem”, trabalhador que sofre com a violência e
se vê impotente diante da criminalidade, tendo na figura policial um salvador, a
única entidade capaz de erradicar o crime; mesmo que, para isso, seja preciso
se utilizar de métodos escusos, desrespeitando direitos fundamentais dos
moradores das regiões periféricas e das classes mais baixas.
Em
nome dessa luta pela erradicação do mal, esquecem-se as possibilidades de
outras denúncias, como outras formas de violência, e justificam-se as ações
incursivas - e de extermínio - da força policial e a intervenção militar nas
favelas; pois este é um “remédio amargo”, mas necessário para a construção de um
futuro de paz. Comemoram-se as apreensões de suspeitos, pois elas representam a
prevenção de crimes que provavelmente seriam cometidos por esses indivíduos,
criminosos em potencial. Em matéria do dia 29 de outubro, o jornal celebra a
captura de um acusado de comandar o crime em Santa Cruz. Com a manchete
“Traficante ‘Ben 10’ vira bonequinho de cadeia”, a matéria lembra que o
suspeito é apenas investigado pela polícia federal e não afirma se há provas ou
fatores que justifiquem a prisão, mas comemora a captura afirmando em seu
título a culpa do investigado ao chamá-lo de traficante (ver
aqui).
O
jornal condena previamente e atua de forma a legitimar a ação policial na
prevenção do mal, em um estado de exceção, no qual as violações de direitos
fundamentais são pontos fora da curva, contingências inevitáveis para a
consecução de um plano maior de erradicação da criminalidade. Assim,
legitima-se a violência institucional que priva de direitos básicos indivíduos
dos grupos sociais marginalizados pelo processo histórico. Identificam-se
virtuais criminosos e virtuais vítimas, excluindo-se desta última categoria, os
moradores das favelas, pela sua proximidade ao foco do mal. Como é citado em Risco e sofrimento evitável (2005):
Em nome das vítimas
virtuais de crime, por exemplo, sumiram críticas à violência policial contra
aqueles que nos põem em risco. À urgência de evitar o risco involuntário e à
relação de cliente estabelecida com o Estado, soma-se uma descontextualização
da ação do criminoso – pode-se, e talvez se deva, desrespeitar seus direitos –
e uma relativa despreocupação com os abusos policiais e os ‘danos colaterais’
que afetam quem está, geográfica e imaginariamente, próximo dos criminosos: a
população das favelas. (VAZ, Paulo, SÁ-CARVALHO, Carolina e POMBO, Mariana. Risco e sofrimento evitável – a imagem
da polícia no noticiário de crime. Revista
da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Dezembro
de 2005. P. 12)
A
construção de imagens e a narrativa da polícia salvadora
A
publicação trabalha com a construção de imagens e conceitos sobre determinadas
regiões da cidade, que revelam uma associação negativa desses espaços com o
crime e a violência urbana. É o que se depreende da cobertura do jornal sobre o
morro do Chapadão e as incursões policiais na região. Elevado à categoria de
“nova fortaleza do tráfico” pela revista Época
e chamado de “novo complexo do Alemão” pelo jornal O Dia, veículo do mesmo grupo do Meia Hora. As matérias sobre o local enfocam um espaço abandonado
pelo estado, entregue à criminalidade e que necessita urgentemente de uma
intervenção, que só pode ser promovida pela polícia (ver
aqui). A associação negativa desses espaços geográficos à memória discursiva
do crime é lembrada pelo pesquisador e antropólogo Marcos Alvito ao retratar
sua experiência de campo em Acari:
Jamais ouvi alguém
dizer que morava no “Complexo de Acari”. Até porque o termo “Complexo”, hoje
amplamente utilizado para designar conjuntos de favelas (“Complexo da
Mangueira”, “Complexo da Maré”, “Complexo do Jacarezinho”, etc), é originário
do vocabulário penal: “Complexo Penitenciário Frei Caneca”, por exemplo, que
engloba diferentes “instituições penais”, como a Penitenciária Milton Dias
Moreira, a Lemos Brito e o Hospital Penitenciário (…) (ALVITO, Marcos. As Cores de Acari – Uma favela carioca.
Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 54)
Ao
comparar o conjunto de favelas do Chapadão ao complexo do Alemão há um outro
discurso implícito, materializado na qualificação do local como “terra de
ninguém”: O Chapadão é o novo Alemão, ou melhor, o antigo Alemão; antes daquela
região ser ocupada pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Essa visão da
polícia como única possibilidade de salvação é reforçada na chamada da capa do
jornal do dia 29 de março deste ano, que comemora o anúncio da instalação de
UPP´s no Chapadão e na Pedreira com o seguinte texto: "Oba! Vagabundo, se liga! Vai ter UPP na Pedreira e no Chapadão"
A cobertura dos arrastões e
apreensões de menores pelo Meia Hora
Sábado,
dia 19 de setembro de 2015, o calor de verão, em pleno outono carioca, lota as
praias. Nas areias de Copacabana, arrastões e outros crimes causam uma confusão
generalizada. Não foi a primeira vez. O mesmo já havia acontecido no fim de
agosto. Revoltados, grupos de jovens da zona sul atacam suspeitos em coletivos na
volta da praia.
As
versões online dos principais veículos abordaram o assunto na noite daquele dia
19. O G1, portal de notícias do grupo
Globo, destacou a confusão e lembrou a proibição imposta pela Vara da Infância
e Juventude, que proibia a apreensão compulsória de menores a caminho da orla
sem o flagrante de delito e sem ordem judicial. Outra matéria, do dia 21 do
mesmo, mês retratou a ação dos grupos de “justiceiros”, divulgando um vídeo em
que jovens retiram suspeitos de ônibus e os agridem. O mesmo foi noticiado pelo
jornal Extra, periódico do mesmo
grupo que, no dia seguinte, estampou nas páginas da sua versão impressa, e
divulgou, ainda de noite no online, reportagens lembrando a ação “revanchista”
dos grupos, mostrando ainda a comunicação de seus integrantes pelas redes
sociais e o apoio de alguns moradores de Copacabana, relatando um comentário de
incentivo às ações: “Polícia não faz nada, os justiceiros fazem! Meus
aplausos.”.
No
entanto, o Meia Hora opta pela
narrativa do medo, trazendo em sua versão impressa do mesmo dia, uma matéria
com a manchete: “Arrastões deixam zona sul em pânico”, alertando para a
violência nas praias. A reportagem da página três enfoca as ações policiais,
como a apreensão de uma arma em Botafogo, e silencia o ataque do grupo de
“justiceiros” contra suspeitos, dando outra interpretação às filmagens: “Em
vídeo, grupo é flagrado pulando de busão”, o jornal não relata a atuação dos
jovens da zona sul e narra o episódio de modo a criminalizar os passageiros que
tentavam fugir da ação dos “justiceiros” (veja aqui o vídeo).
A
interpretação destaca a imagem que o jornal faz do conceito de “vítimas
virtuais”: o cidadão da zona sul, que na falta ou ineficiência da polícia, age
por conta própria para punir eventuais suspeitos e intimidar a ocorrência de
novos crimes em sua “área”. O mal a ser destacado não é a ação dos “justiceiros”,
mas a fuga dos passageiros dos ônibus, que, para tal, destroem o patrimônio
privado quebrando as janelas do veículo. A figura do morador da zona norte, em
sua maioria negro ou pardo, mostra-se incompatível com a da vítima virtual a
ser protegida. Deste modo, a restrição da liberdade de locomoção de indivíduos
potencialmente criminosos e a ação de grupos paramilitares, vedados
expressamente pela constituição de 1988, para punição e prevenção do crime; são
toleráveis para o jornal.
Referências bibliográficas
ALVITO, Marcos. As Cores de Acari – Uma favela carioca. Rio de Janeiro: FGV, 2001. 308p.
LIMA, Roberto Kant de. “Administração dos conflitos no Brasil”. In Cidadania e violência. VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos.
VAZ, Paulo, SÁ-CARVALHO, Carolina e POMBO, Mariana. Risco e sofrimento evitável – a imagem da polícia no noticiário de crime. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Dezembro de 2005. Disponível em < http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/46/46>. Acesso em 29 de out. de 2015.
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